1) Na política, quando se entra em plano inclinado, é um mau sinal: em regra, é irreversível. Mesmo que a inclinação tenha um grau pequeno ao princípio, ela não permite voltar ao ponto de partida. Claro que há quedas abruptas, como as que sucederam há anos a Santana Lopes ou a Sócrates, e há deslizes graduais que se vão acelerando com o tempo por mais que as alianças formais se mantenham, como é manifestamente o caso atual.
Nos anos 80, assim aconteceu com a AD depois da morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa. Balsemão bem tentou e até conseguiu feitos notáveis para um primeiro-ministro sistematicamente atacado por Cavaco Silva e Eurico de Melo, e que soçobrou com a deserção de Freitas do Amaral depois de eleições que a AD tinha ganho. Anos mais tarde deu-se algo parecido com Guterres. É a vida. Ou melhor, é a vida na política quando se entra em declínio.
Quanto à geringonça, acontece que se trata de uma solução condenada porque é irrepetível. A coligação de incidência parlamentar que a sustenta nasceu de uma circunstância única em que os partidos da esquerda se viram obrigados a unir esforços de forma inédita, histórica e de algum modo patriótica, para evitar que houvesse novo governo do PSD e do CDS, ainda que minoritários, ou, pior ainda para bloquistas e comunistas, uma coligação de bloco central – aí sem António Costa, que teria de sair do PS por não ter ganho as eleições e de ceder o lugar de chefe de governo, possivelmente a Passos Coelho. Com esta solução, todos se salvaram do naufrágio, obtendo resultados claramente positivos devido a uma conjugação de estratégia inteligente e de conjuntura internacional.
Pelo que se vê hoje, a geringonça vai chegar ao fim da legislatura, talvez com uma eventual antecipação do timing eleitoral por acordo entre os seus parceiros, a oposição e o próprio presidente Marcelo. Seria, de facto, suicidário para os seus protagonistas dissolver o acordo perto do seu final. Tão suicidário como seria para o PCP decidir renovar o pacto atual pelo menos do ponto de vista formal (como ficou patente na entrevista que Jerónimo de Sousa deu agora ao “Expresso”), pois o partido, no final, terá conseguido mais ou menos tudo o que poderia obter, fazendo sentido voltar à sua vocação de líder da mobilização social e não propriamente de muleta ou de movimento de causa fraturantes. Essa é a área que reconhecidamente o Bloco de Esquerda ocupa e que pode perfeitamente passar a fazer no interior de um governo com os socialistas. Claro que haveria depois o risco de o Bloco se desagregar ou de se diluir dentro do PS. Mas é preciso reconhecer que, a prazo, esse é o seu desígnio provável, como sucedeu, em tempos, em França com o PSU de Rocard. Evidentemente que também existe a possibilidade de um dia chegar até nós um terramoto político como o que ocorreu recentemente, também em França, que engoliu os partidos tradicionais. Convenhamos, no entanto, que é uma probabilidade baixa. Desde que houve o caso PRD e o nascimento do Bloco, o mais que há são transferências de votos que, no máximo, flutuam em 10 ou 12% entre PS e PSD.
Alguns socialistas mais antigos e com boa memória recordam muitas vezes Almeida Santos, um dos políticos mais hábeis de uma geração influente. Dizia ele que na política, quando se começa a entrar num plano inclinado, já não há nada a fazer. No fundo, é como nos escorregas: depois de embalado, é sempre a descer. É a lógica da lei da gravidade. A geringonça enquanto tal já vai por aí abaixo, o que não significa que cada um dos seus partidos e líderes não possam safar-se bastante bem, nomeadamente António Costa, que é quem tem mais argumentos, mais meios, mais habilidade e mais lata, ao ponto de contratar figurantes pagos para fazerem perguntas ao governo, a fim de assinalar o seu segundo ano. Não havia necessidade, nem ele precisava disso.
2) A história da ida do Infarmed para o Porto parece um daqueles casamentos celebrados em Las Vegas depois de uma noite de farra entre dois desconhecidos. Tal como esses enlaces, todos percebemos que a coisa não é para durar e levar a sério. Foi um impulso e pronto. Uma promessa para compensar um desgosto muito grande. E a marcha-atrás começou no dia a seguir ao anúncio. Admira que Rui Moreira se tenha deixado enganar e até comover com a historieta. E também surpreende que tudo se tenha passado nas barbas de Fernando Medina, que nem protestou. E aqui coloca-se uma dupla pergunta: não falou porque não acha importante ter o Infarmed em Lisboa? Ou foi porque percebeu tratar-se de uma manobra ardilosa de António Costa? Quem quiser mesmo descentralizar deve fazê-lo a partir de instituições simbólicas como o Tribunal Constitucional e outros tribunais superiores, os reguladores quase todos, a sede da Concertação Social, algumas federações e fundações apoiadas pelo Estado e, sobretudo, o Ministério da Agricultura, que é tão tentacular como inútil na capital. Ponham-no em Viseu ou em Beja, que é lá que estão os problemas.
Jornalista