As discussões travadas em torno da nossa vida política e social veem-se hoje confinadas ao binómio utopia/justa versus realidade/injusta, mas inevitável.
Esta contraposição, que nos é imposta como intransponível, evita, em regra, a discussão da justiça da utopia e favorece, portanto, a inelutabilidade da realidade existente, por mais injusta que ela seja.
A verdade é que nem sempre a realidade se impôs à utopia e, sempre que assim sucedeu, outras realidades mais justas acabaram, muitas vezes, por se impor e moldar a vida dos homens e do mundo, dando-lhes a eles e aos seus descendentes uma vida melhor.
Não respeitar a realidade e ignorar o seu peso e efeitos conduz quase sempre à catástrofe.
A realidade não é, todavia, algo com que os homens queiram viver eternamente e não constitui seguramente, por isso – designadamente quando estática e conformada –, um fator de progresso da vida.
O progresso reside, precisamente, na transformação da realidade e na ambição da criação de uma outra realidade que cumpra os sonhos realizáveis que, em cada momento, movem as pessoas e as sociedades.
O problema do confronto entre a utopia e a realidade não se situa, portanto, no antagonismo radical daqueles dois modos de olhar a vida.
Nenhuma realidade é verdadeiramente suportável sem que lhe esteja associado um grau de utopia.
Nenhuma utopia é motivadora sem que quem a assuma tome como base a realidade que quer transformar.
A vida das pessoas e das sociedades vive bem com o confronto entre realidade e utopia – vive, sim, deste.
O problema das pessoas e das sociedades – aquilo que verdadeiramente as inquieta ou liquida – reside, precisamente, na perda de qualquer grau de utopia que as ajude a mudarem a vida.
Sem projeto utópico e sem vontade de mudança não haverá, com efeito, realidade que seja suportável por muito tempo, não há vida que seja vivível; não há vida.
Apelar, por isso, ao sentido da realidade para conter a utopia significa procurar matar o empreendimento que dá vida à vida, seja ele pessoal, empresarial, social ou político.
Que há que ter em conta os condicionalismos da realidade, parece óbvio; precisamente quando se quer, verdadeiramente, realizar qualquer projeto.
Por isso, o que na verdade se afigura irrealista, mesmo quando se apela ao realismo, é que não se arquitete um qualquer projeto, mesmo que condicionado, para mudar a realidade.
A insistência no discurso da realidade sem prefiguração de um projeto realista não só não impede uma realidade nova de se concretizar como, sobretudo, torna descartável quem o faz.
Hoje em dia, passamos o tempo a ouvir falar de populismos, que ninguém sabe muito bem definir, mas que todos sabem que são erguidos por discursos contra uma realidade pesada e que se apresenta como imutável.
De resto, a prazo, todas as realidades, por mais aprazíveis que pareçam ser, são pesadas e, por isso, se tornam insuportáveis.
Mas, como o que as pessoas verdadeiramente são é realistas, o que querem é projetos que lhes aliviem o peso da realidade.
Uma sociedade sem projetos, sem utopia é uma sociedade adormecida, morta e que apenas pode ser despertada pela mais irrealista das utopias; e, na invenção de tais fantasias, os populistas são exímios.
Projetar realisticamente um futuro melhor e mais justo para todos, envolvendo abertamente nesse projeto toda a sociedade, é a única maneira de esconjurar os Velhos do Restelo, mesmo quando travestidos de vendedores sorridentes de novas realidades que, afinal, mais se parecem com as antigas.
Escreve à terça-feira