Subitamente parece que entrámos no registo de “um dia de cada vez”, sem linhas de continuidade ou de sustentabilidade. Não será, certamente, apenas porque a precipitação pluvial não faz as aparições que a temporada exigia. Nem tão-pouco porque a atualidade se atafulha com agitações pseudonoticiosas geradas nas redes sociais, sem pingo de relevância concreta para a vida das pessoas. Ou ainda porque alguns dos dizeres e ações que povoam o universo mediático, quando avaliados na fita do tempo, parecem desprovidos de senso.
Ao longo dos últimos anos construiu–se uma narrativa de reversões e devoluções alicerçada na ideia de que a página da austeridade tinha sido virada com a mudança de governo. Imunes aos compromissos internacionais ainda em vigor, apenas tabeliados pelo Partido Socialista, indiferentes à existência de uma galopante dívida pública e alheados dos protelamentos, cativações e afins, agigantou-se a ideia de que haveria margem para a mãe de todas as reposições da situação anterior às primeiras amputações de rendimentos e à entrada da troika no território da pátria amada.
A conveniência cimentosa do imaginário alimentado foi gerando crescentes expetativas, nunca desmobilizadas e sempre viabilizadas pelo silêncio, que desembocaram agora no princípio de acordo com o maioral da educação em Portugal, depois de mais uma inacreditável descoordenação da mensagem política. Num dia, “uma coisa é repor o cronómetro a contar, outra é recuperar o tempo perdido”, primeiro-ministro António Costa, 14 de novembro de 2017. No dia seguinte, “vai ser encontrada uma forma de recuperar esse tempo de serviço. Veremos com os sindicatos de que forma se fará o seu faseamento”, secretária de Estado Alexandra Leitão, 15 de novembro de 2017. Em “abstrato”, não sei, mas em concreto são coisas incompatíveis.
Consagrada a abertura da caixa de Pandora da recuperação do tempo perdido para os professores, é legítima a reivindicação de similar acesso à via verde que possibilita o regresso ao passado com os olhos postos no futuro individual, seja qual for o índice de sustentabilidade que a opção política tenha em matéria de disponibilidade de recursos financeiros do Estado. Pressuposto fundamental do ambiente de confiança existente e dos fluxos turísticos acolhidos, a segurança, a real e a percecionada, tem contado com um inquestionável sentido de missão das mulheres e dos homens que integram as várias forças de segurança, apesar das condições remuneratórias e das condições operacionais. Com que argumento é que, com o nível de desgaste da profissão e de delapidação das remunerações, não terão acesso a tratamento igual ao dos professores? E os militares? E tantos outros que na função pública e no setor privado viram as suas vidas tolhidas por opções políticas que não tiveram em conta a sustentabilidade e o senso.
Fragilizado por um verão desastroso e lamentável, o governo deixou-se enlear na teia de aranha urdida pelos apoiantes da solução governativa, pelos seus sucedâneos e pelas circunstâncias de uma narrativa de disponibilidade para regressar ao passado. E, com maior ou menor habilidade política, é assim que estamos, a voar sobre a teia de aranha, qual ninho de cucos. Dar a uns significará dar o mesmo aos restantes ou generalizar a agitação social, até agora alimentada por questões de natureza setorial ou de calendário.
E depois, no domínio dos ninhos de cucos e dos cucos que ocupam os ninhos alheios para enjeitar os ovos de outros, há o caso da nova localização da Agência Europeia do Medicamento, agora relocalizada em Amesterdão, após a derrota da proposta do governo da candidatura do Porto. Primeiro, candidatava-se Lisboa; o Porto protestou; o governo, em vésperas das eleições autárquicas, cedeu; e Lisboa resignou-se. Conclusão: o PS não ganhou a Câmara Municipal do Porto nem nada que se parecesse, e o Porto não acolherá a Agência Europeia do Medicamento. Mas como o Natal é quando um homem quiser, vai acolher a sede do Infarmed. Não tem a Agência Europeia do Medicamento, mas passa a ter a agência nacional. O primeiro-ministro impôs a sua vontade e o ministro da Saúde cumpriu a orientação, sem que os funcionários do Infarmed fossem avisados. É assim que se faz política em Portugal, a metro, por reação e para português ver. Os resultados proliferam e estão à vista de todos. A menos que a troco desta mutação de candidaturas de Lisboa pelo Porto rumo à derrota já tenha sido negociado como contrapartida para a ida de Mário Centeno para a liderança do Eurogrupo. A concretizar-se, continuaremos no domínio da teia de aranha, mas com resultados obtidos por vontade própria. A vontade de consagrar ao nível europeu uma solução governativa que tanto contou com o contributo do Banco Central Europeu e das teias de aranha da conjuntura europeia.
Anda estranho o país, e ainda mais uma Europa que nem consegue escolher uma sede de uma agência europeia sem ter de recorrer ao arbítrio de um sorteio. Tempo houve em que resultados desportivos eram obtidos por moeda ao ar. Será mais um regresso ao passado?
NOTAS FINAIS
Parece que foi ontem Entregue à sua sorte pelos parceiros de solução governativa no processo de cooperação estruturada permanente no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PESCO), o governo de Portugal não assinou o acordo europeu no ato fundador, mas o PS já exultou com o consenso obtido com o PSD para superar a solidão parlamentar de circunstância.
Até há dois meses Uma nuvem de radiações nucleares andou a pairar sobre a Europa entre 26 de setembro e 19 de outubro, sem que qualquer sistema de alerta europeu ou internacional piasse para alertar os cidadãos. Estamos bem entregues.
Dois anos depois “A ilusão de que é possível tudo para todos, já não existe isso”, António Costa, 21 de novembro de 2017.
Militante do Partido Socialista
Escreve à quinta-feira