As ruas foram feitas para conquistar


Como explicar a alguém que há um elefante num quarto quando só parece capaz de ver as porcelanas que o rodeiam


Sigo a realidade em Espanha em zonas onde as tensões são mais agudas e violentas. Onde, para Madrid, existem sentimentos nacionalistas: basco, catalão, galego e até andaluz. Sempre me surpreendeu que as pessoas, imersas num conflito que tem dimensões identitárias, não percebam que a identidade ideológica dominante tende a parecer não existir, como se fosse uma espécie de buraco negro invisível que só é percetível pelo comportamento que obriga outros planetas a ter na sua gravitação.

Nós não temos um problema de negros nos EUA, temos um problema de racismo de brancos que historicamente escravizaram, segregaram, discriminaram e guetizaram a maior parte da população negra desse país, que não tem igual acesso ao ensino, à saúde e à justiça; nós não temos um problema com mulheres feministas, temos um problema de mais de metade da população não ter igual acesso aos lugares de poder na nossa sociedade, e de as mulheres serem objetificadas do ponto de vista sexual (o que não é o mesmo que a livre expressão do desejo), como se fossem um objeto para deleite dos homens, que dominam a sociedade; nós não temos um problema com os trabalhadores, temos um problema com um modo de produção capitalista que emprega e desemprega a gente que cria a riqueza, conforme os apetites do jogo bolsista, e que redistribui de uma forma cada vez mais desigual a riqueza criada no mundo. Da mesma maneira que não há um problema com os catalães – o problema é o nacionalismo espanhol, que tem a imensa capacidade de parecer invisível; só se manifesta nas ruas por oposição aos outros e limita e reprime decisões democráticas tomadas nessas comunidades.

Há quem diga que este discurso pode ser verdadeiro em relação aos negros, às mulheres e aos trabalhadores, mas não se aplica a determinadas comunidades políticas a que se estabeleceu chamar nações. Dar expressão a essas identidades seria dar uns passos atrás e alimentar uma dinâmica xenófoba e excludente.

Há uma determinada esquerda para a qual a União Europeia é uma democracia, sem entenderem que as suas principais decisões de austeridade, estabelecimento da moeda única, dar prioridade aos banqueiros e ao capital financeiro em vez de dar condições de vida à maior parte das pessoas que lá vivem são a consequência direta da sua arquitetura, que é feita para garantir o predomínio da livre circulação dos capitais sobre tudo o resto. Essa gente não percebe que a única possibilidade de contrariar esse poder gigantesco do capital é a recuperação da soberania democrática e popular, em todos os espaços em que ela se pode exercer. Para essa esquerda, que defende o cosmopolitismo, exigir que num bairro, numa empresa, numa região e num país haja mecanismos democráticos em que as pessoas exerçam a autodeterminação é alimentar um discurso nacionalista, xenófobo e excludente.

Essa gente prega que o único caminho é ter fé e ajoelharmo-nos perante o capital financeiro global, retirar-lhe todas as regulamentações e rezar para que a expansão desse capital transnacional nos leve automaticamente a uma democracia política mundial que vá controlar o capital e democratizar e economia. Não há nenhuma margem de controlo democrático perante a globalização e a financeirização das nossas economias. É preciso recuperar a escala e o controlo democrático para que, depois, a globalização possa ser feita em moldes democráticos. A crise da democracia perante o capital deriva de que, em democracia, cada pessoa tem direito a um voto, e no capital financeiro manda quem tem mais ações. Na vida real, são as grandes multinacionais que decidem sobre quase tudo e quem domina a economia, deixando às pessoas o poder de decidir sobre a forma como tocam o hino e hasteiam a bandeira.

Ao contrário do que se afirma, o independentismo catalão não está construído sobre um discurso excludente – 70% dos eleitores catalães provêm de fora da Catalunha –, mas sobre uma reivindicação de democracia e autodeterminação que foi multiplicada e tornada urgente com a última crise económica e financeira do capitalismo. O Estatuto da Catalunha, depois de ter sido aprovado no parlamento catalão, alterado no parlamento espanhol e referendado pelos eleitores catalães, foi chumbado em 2010 pelo Tribunal Constitucional espanhol.

Mais de 35 leis do parlamento catalão foram chumbadas depois por Madrid. O parlamento da Catalunha aprovou uma lei da pobreza energética que previa que as populações mais pobres pagassem menos eletricidade para garantir o seu acesso a um bem essencial; o governo do PP chumbou-a. Para o executivo de Rajoy é normal as empresas pagarem para a caixa do seu partido para verem os seus projetos aprovados; é normal a direção do PP estar em liberdade quando é confirmado pelo principal investigador do caso Gurtel que o presidente do governo recebia do dinheiro que davam as empresas privadas, nesse esquema de corrupção; para o PP é natural que os contribuintes paguem as centenas de milhares de milhões de euros dos desfalques e imparidades dos banqueiros e dos seus bancos, mas é ilegal que se ajudem as famílias mais pobres a sobreviver.

O que é feito na Catalunha é o mesmo que é feito em qualquer região de Espanha. A Câmara de Madrid, dirigida por uma coligação com o Podemos, reduziu em 2 mil milhões de euros a dívida da autarquia, herdada do PP, com uma política que privilegiava os gastos sociais, o pagamento das dívidas aos mais pobres e necessitados e contestação e renegociação dos pagamentos especulativos. O governo espanhol fez uma intervenção na câmara e colocou, a vigiar todos os movimentos financeiros da autarquia, um dos homens que mais endividou aos bancos a sua autarquia de origem. Os madrilenos e os seus eleitos não podem decidir como pagar as suas dívidas. O governo de Rajoy está lá para dar primeiro aos seus amigos, aqueles que lhe alimentam o saco azul. Aqui como na Catalunha, há um problema de autodeterminação. Isto é assim há muito tempo.

No dia 3 de março de 1976, cinco mil operários de Vitória-Gazteiz, no País Basco, estavam em greve por aumentos de salários. Espanha vivia a chamada transição democrática. Os operários, quando saíam da Igreja de Zaramaga, foram literalmente fuzilados pela polícia. Nas gravações das forças da ordem pode ouvir-se um polícia a comunicar com outro: “É um massacre.” No chão ficaram cinco mortos e mais de 100 feridos. No dia seguinte, a polícia abate mais duas mulheres durante protestos.
É ministro da Administração Interna Fraga Iribarne, que veio a ser fundador e líder do partido que derivou no atual PP. O cantor catalão Lluís Llach escreve nessas horas uma música que ressoa até agora: “Campanades a morts fan un crit per la guerra dels tres fills que han perdut les tres campanes negres.”

Quarenta anos depois do massacre visitei o bairro de Errekaleor, que foi construído, por ordem de Franco, nos arredores de Vitória-Gazteiz, nos anos 50. “A ideia de o construir fora da cidade foi para não contagiar os locais com as ideias de pessoas que vinham de outras regiões de Espanha, entre as quais havia comunistas e anarquistas”, explica Carlos, um dos elementos do coletivo independentista basco de uma centena de jovens que ocupa o bairro. “Os franquistas só mandaram construir as casas, de modo que todas as infraestruturas sociais – cantina, cinema, salas coletivas – foram feitas pelos próprios operários.” Passamos junto à casa de Romualdo Chaparro, original da província da Estremadura, um dos trabalhadores assassinados há 40 anos – na altura, tinha apenas 19. Nas paredes exteriores da casa foi pintado um mural de homenagem pelos jovens independentistas bascos. Pode ver-se a cara dele e do pai e a inscrição: “Tal pai, tal filho.” Foi o pai de Romualdo, também estremenho, que não se conformou com a morte do filho e criou a Associação das Vítimas do 3 de Março. Anos depois, o bairro foi-se esvaziando devido a uma política imobiliária que deixou milhares de casas vazias na cidade.

Os jovens ocuparam-no e a polícia já os tentou despejar várias vezes. Contaram com a solidariedade de centenas de pessoas do País Basco e do resto de Espanha, e resistiram. Funcionam por coletivos e em plenário. Construíram uma padaria, horta coletiva, biblioteca. Os jovens ocupantes querem reivindicar o uso de milhares de casas devolutas existentes em Vitória-Gazteiz e estabelecer uma forma de vida alternativa em que os problemas sociais são resolvidos em conjunto.

Aqui como na Catalunha – onde dezenas de milhares de pessoas garantiram que dois milhões e 200 mil pessoas pudessem votar no referendo de 1 de outubro –, há um movimento para dar poder às gentes. Foram as pessoas que ocuparam um bairro basco, foram também elas que ocuparam as escolas, se auto-organizaram, na Catalunha, e garantiram que a liberdade e a democracia pudessem expressar-se contra as balas de borracha e as cargas policiais. A história ainda não acabou. Mas isto aconteceu.


As ruas foram feitas para conquistar


Como explicar a alguém que há um elefante num quarto quando só parece capaz de ver as porcelanas que o rodeiam


Sigo a realidade em Espanha em zonas onde as tensões são mais agudas e violentas. Onde, para Madrid, existem sentimentos nacionalistas: basco, catalão, galego e até andaluz. Sempre me surpreendeu que as pessoas, imersas num conflito que tem dimensões identitárias, não percebam que a identidade ideológica dominante tende a parecer não existir, como se fosse uma espécie de buraco negro invisível que só é percetível pelo comportamento que obriga outros planetas a ter na sua gravitação.

Nós não temos um problema de negros nos EUA, temos um problema de racismo de brancos que historicamente escravizaram, segregaram, discriminaram e guetizaram a maior parte da população negra desse país, que não tem igual acesso ao ensino, à saúde e à justiça; nós não temos um problema com mulheres feministas, temos um problema de mais de metade da população não ter igual acesso aos lugares de poder na nossa sociedade, e de as mulheres serem objetificadas do ponto de vista sexual (o que não é o mesmo que a livre expressão do desejo), como se fossem um objeto para deleite dos homens, que dominam a sociedade; nós não temos um problema com os trabalhadores, temos um problema com um modo de produção capitalista que emprega e desemprega a gente que cria a riqueza, conforme os apetites do jogo bolsista, e que redistribui de uma forma cada vez mais desigual a riqueza criada no mundo. Da mesma maneira que não há um problema com os catalães – o problema é o nacionalismo espanhol, que tem a imensa capacidade de parecer invisível; só se manifesta nas ruas por oposição aos outros e limita e reprime decisões democráticas tomadas nessas comunidades.

Há quem diga que este discurso pode ser verdadeiro em relação aos negros, às mulheres e aos trabalhadores, mas não se aplica a determinadas comunidades políticas a que se estabeleceu chamar nações. Dar expressão a essas identidades seria dar uns passos atrás e alimentar uma dinâmica xenófoba e excludente.

Há uma determinada esquerda para a qual a União Europeia é uma democracia, sem entenderem que as suas principais decisões de austeridade, estabelecimento da moeda única, dar prioridade aos banqueiros e ao capital financeiro em vez de dar condições de vida à maior parte das pessoas que lá vivem são a consequência direta da sua arquitetura, que é feita para garantir o predomínio da livre circulação dos capitais sobre tudo o resto. Essa gente não percebe que a única possibilidade de contrariar esse poder gigantesco do capital é a recuperação da soberania democrática e popular, em todos os espaços em que ela se pode exercer. Para essa esquerda, que defende o cosmopolitismo, exigir que num bairro, numa empresa, numa região e num país haja mecanismos democráticos em que as pessoas exerçam a autodeterminação é alimentar um discurso nacionalista, xenófobo e excludente.

Essa gente prega que o único caminho é ter fé e ajoelharmo-nos perante o capital financeiro global, retirar-lhe todas as regulamentações e rezar para que a expansão desse capital transnacional nos leve automaticamente a uma democracia política mundial que vá controlar o capital e democratizar e economia. Não há nenhuma margem de controlo democrático perante a globalização e a financeirização das nossas economias. É preciso recuperar a escala e o controlo democrático para que, depois, a globalização possa ser feita em moldes democráticos. A crise da democracia perante o capital deriva de que, em democracia, cada pessoa tem direito a um voto, e no capital financeiro manda quem tem mais ações. Na vida real, são as grandes multinacionais que decidem sobre quase tudo e quem domina a economia, deixando às pessoas o poder de decidir sobre a forma como tocam o hino e hasteiam a bandeira.

Ao contrário do que se afirma, o independentismo catalão não está construído sobre um discurso excludente – 70% dos eleitores catalães provêm de fora da Catalunha –, mas sobre uma reivindicação de democracia e autodeterminação que foi multiplicada e tornada urgente com a última crise económica e financeira do capitalismo. O Estatuto da Catalunha, depois de ter sido aprovado no parlamento catalão, alterado no parlamento espanhol e referendado pelos eleitores catalães, foi chumbado em 2010 pelo Tribunal Constitucional espanhol.

Mais de 35 leis do parlamento catalão foram chumbadas depois por Madrid. O parlamento da Catalunha aprovou uma lei da pobreza energética que previa que as populações mais pobres pagassem menos eletricidade para garantir o seu acesso a um bem essencial; o governo do PP chumbou-a. Para o executivo de Rajoy é normal as empresas pagarem para a caixa do seu partido para verem os seus projetos aprovados; é normal a direção do PP estar em liberdade quando é confirmado pelo principal investigador do caso Gurtel que o presidente do governo recebia do dinheiro que davam as empresas privadas, nesse esquema de corrupção; para o PP é natural que os contribuintes paguem as centenas de milhares de milhões de euros dos desfalques e imparidades dos banqueiros e dos seus bancos, mas é ilegal que se ajudem as famílias mais pobres a sobreviver.

O que é feito na Catalunha é o mesmo que é feito em qualquer região de Espanha. A Câmara de Madrid, dirigida por uma coligação com o Podemos, reduziu em 2 mil milhões de euros a dívida da autarquia, herdada do PP, com uma política que privilegiava os gastos sociais, o pagamento das dívidas aos mais pobres e necessitados e contestação e renegociação dos pagamentos especulativos. O governo espanhol fez uma intervenção na câmara e colocou, a vigiar todos os movimentos financeiros da autarquia, um dos homens que mais endividou aos bancos a sua autarquia de origem. Os madrilenos e os seus eleitos não podem decidir como pagar as suas dívidas. O governo de Rajoy está lá para dar primeiro aos seus amigos, aqueles que lhe alimentam o saco azul. Aqui como na Catalunha, há um problema de autodeterminação. Isto é assim há muito tempo.

No dia 3 de março de 1976, cinco mil operários de Vitória-Gazteiz, no País Basco, estavam em greve por aumentos de salários. Espanha vivia a chamada transição democrática. Os operários, quando saíam da Igreja de Zaramaga, foram literalmente fuzilados pela polícia. Nas gravações das forças da ordem pode ouvir-se um polícia a comunicar com outro: “É um massacre.” No chão ficaram cinco mortos e mais de 100 feridos. No dia seguinte, a polícia abate mais duas mulheres durante protestos.
É ministro da Administração Interna Fraga Iribarne, que veio a ser fundador e líder do partido que derivou no atual PP. O cantor catalão Lluís Llach escreve nessas horas uma música que ressoa até agora: “Campanades a morts fan un crit per la guerra dels tres fills que han perdut les tres campanes negres.”

Quarenta anos depois do massacre visitei o bairro de Errekaleor, que foi construído, por ordem de Franco, nos arredores de Vitória-Gazteiz, nos anos 50. “A ideia de o construir fora da cidade foi para não contagiar os locais com as ideias de pessoas que vinham de outras regiões de Espanha, entre as quais havia comunistas e anarquistas”, explica Carlos, um dos elementos do coletivo independentista basco de uma centena de jovens que ocupa o bairro. “Os franquistas só mandaram construir as casas, de modo que todas as infraestruturas sociais – cantina, cinema, salas coletivas – foram feitas pelos próprios operários.” Passamos junto à casa de Romualdo Chaparro, original da província da Estremadura, um dos trabalhadores assassinados há 40 anos – na altura, tinha apenas 19. Nas paredes exteriores da casa foi pintado um mural de homenagem pelos jovens independentistas bascos. Pode ver-se a cara dele e do pai e a inscrição: “Tal pai, tal filho.” Foi o pai de Romualdo, também estremenho, que não se conformou com a morte do filho e criou a Associação das Vítimas do 3 de Março. Anos depois, o bairro foi-se esvaziando devido a uma política imobiliária que deixou milhares de casas vazias na cidade.

Os jovens ocuparam-no e a polícia já os tentou despejar várias vezes. Contaram com a solidariedade de centenas de pessoas do País Basco e do resto de Espanha, e resistiram. Funcionam por coletivos e em plenário. Construíram uma padaria, horta coletiva, biblioteca. Os jovens ocupantes querem reivindicar o uso de milhares de casas devolutas existentes em Vitória-Gazteiz e estabelecer uma forma de vida alternativa em que os problemas sociais são resolvidos em conjunto.

Aqui como na Catalunha – onde dezenas de milhares de pessoas garantiram que dois milhões e 200 mil pessoas pudessem votar no referendo de 1 de outubro –, há um movimento para dar poder às gentes. Foram as pessoas que ocuparam um bairro basco, foram também elas que ocuparam as escolas, se auto-organizaram, na Catalunha, e garantiram que a liberdade e a democracia pudessem expressar-se contra as balas de borracha e as cargas policiais. A história ainda não acabou. Mas isto aconteceu.