No conhecido romance do Divino Marquês, a heroína, Justine, sofre todos os aviltamentos e abusos para que o narrador consiga provar com o seu sadismo, substantivo a que o autor deu o nome, a hipocrisia total existente nas relações entre homens e mulheres à época. São relações de poder construídas pela desigualdade, rasgadas pela violência e perdoadas pela moral vigente. A discussão se as mulheres tinham alma é muito anterior mas, durante muitos anos, elas só tinham corpo. Não passavam de corpos conquistados e violentados.
Muito mudou, mas demasiado ficou igual. Nesta semana, um juiz espanhol aceitou como provas vídeos e fotos de uma jovem vítima, 18 anos, de uma violação coletiva, recolhidas semanas depois do crime por detetives a soldo dos acusados. A tese é que este material provava que “ela não estava suficientemente abatida”, até “colocou posts com músicas nas redes sociais”; logo, no fundo, foi culpada e consentiu ser violentada por cinco homens na entrada de um prédio, quando se dirigia para o seu carro, depois do fim da Feira de San Fermín.
A operação que permite fazer da vítima culpada é a mesma que justificava que as mulheres não passam de corpos à disposição dos homens. São 200 anos anos de cultura e civilização que se esfumam num segundo.
É natural que perante este tipo de factos, e com a recente vaga de denúncias sobre assédios e abusos vários nas indústrias cinematográfica e da moda, haja uma espécie de reação em cadeia. Há muitas atitudes que passavam por normais que hoje nos são reveladas na sua crueza de anormalidade. E que só não pareciam anormais à época porque, quando apareciam, estavam “justificadas” pela ideologia machista, que pensava em voz baixa que o desejo da mulher é uma conquista do homem e que, sempre que alguém dizia “não”, no fundo, podia ser convencida, para seu bem, a dizer “sim”.
A violência é a forma do desejo dos violentos. Mas o desejo sexual não é uma expressão de uma violência contra o outro, sempre que o desejo deixa de ser exclusivamente masculino, para ser a expressão livre da vontade de mulheres e homens.
No amor e no sexo há coisas que são eternas e outras que mudam. Um autor esquecido, Roger Vailland, dizia que as formas do amor e as suas moralidades são expressas de uma forma diferente ao longo dos tempos e que o amor-paixão é uma forma recente do amor: “A cama é para o amor-prazer o que o dinheiro é para o jogo. Foi precisa uma certa burguesia para imaginar o jogo a feijões e o amor sem ir para a cama.”
A 25 de março de 1950, o poeta italiano Cesare Pavese escreve as últimas páginas do seu diário, “Ofício de Viver”. “Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada.” Pavese suicida-se num quarto de hotel em Turim, tinha 42 anos. O homem que garantia que no amor e perante Deus é impossível fazer batota, sabia, afinal, sair de jogo.
Isso foi no tempo antes das apps. Hoje, Pavese, depois de colocar um gatinho no Facebook, olharia para a sua conta de Tinder para ver se já tinha um novo match. Enquanto há likes há esperança.
As variações possíveis do sexo já estão, pelo menos desde o “Kamasutra”, razoavelmente exercitadas. Mas os processos de “namoro” e sociabilidade não param de se modificar. Desde o portão, passando pelo baile popular, ao computador. As formas mudaram e são elas que comandam, muitas vezes, o conteúdo das nossas relações.
As grande diferenças do registo amoroso e da sedução não são ditadas pelas pessoas, mas pelo tipo de redes sociais que usam. Nós somos muito mais feitos pelas coisas do que elas são feitas por nós. As redes que aparentemente nos juntam são muitas vezes o que garante a nossa atomização. As pessoas já não fazem coisas em conjunto, já não preenchem coletivamente o espaço público e comum. Teclam isoladas, construindo uma ilusão de companhia numa ruidosa solidão.
De resto, há redes sociais, aplicações e páginas para todas as orientações e gostos que configuram todas as geometrias do desejo: há para ursinhos lambões, malta que gosta de se vestir de peluche, Furrymate; para pessoas que são intolerantes ao glúten, GlutenfreeSingles; gente que gosta de dar dentadas no pescoço, Date Vampires; para encontros de pessoas com herpes, uma página com 800 mil inscritos com nome esclarecedor: HerpesPeopleMeet; os fiéis dos animais, não obrigatoriamente gente que prefere fazê-lo a quatro patas, têm as suas aplicações e páginas próprias para encontros, como Twingdog e Animoflirt.
Acresce, devido aos benéficos processos nos hábitos e costumes, como dizia um destes dias alguém no Facebook, que a forma mais segura de tentar engatar alguém é no Tinder. Ao menos, aí ninguém é processado por fazer convites, por mais imbecis que sejam. E estamos sempre à distância segura de quem não tem ninguém a respirar perto do pescoço.
É irónico que enquanto se multiplicam as possibilidades de termos parceiros sexuais, começa-se a querer criminalizar os processos de sedução e de expressão de desejo.
Na normalidade burguesa de hoje, é perfeitamente normal comercializar o sexo ou até os afetos, se for uma transação em que se troca um serviço por dinheiro. Para alguns, é um processo tão natural, ou pouco natural, como “vender a força de trabalho” em troca de um salário, como em qualquer profissão. Mas tornou-se repelente, para muitos, qualquer expressão direta e presencial de sedução e desejo. Como se toda a proximidade fosse inevitavelmente um incómodo e uma restrição da liberdade de quem recebe essa proposta.
Vivemos em dois polos opostos: devíamos escolher eletronicamente quem desejamos com as regras das compras online num catálogo do IKEA. Mas isso exige que seja feito sem proximidade ou risco de sedução. Tudo pode ser pedido de uma forma fria, como se preenche um questionário, desde que estejamos à enorme distância de um clique.
O que é irónico é que estejamos disponíveis para ser licitados numa rede social de forma crua quando nos tornamos justamente mais atentos à forma como as pessoas se dirigem às outras no espaço público. Aquilo que não aceitamos numa rua, ou não nos agrada numa festa, é o standard do comportamento eletrónico em determinadas aplicações. A distância dá-nos uma ilusão de segurança e confundimos isso com igualdade e liberdade.
O grande problema não está na expressão do desejo de alguém, o problema está na sua imposição, que é fruto da diferença de poder entre as pessoas. É essa desigualdade que cria a possibilidade de coação e abre espaço à perda de liberdade no espaço público. É a violência, o assédio, a coerção, a chantagem que são crimes. Não é o desejo.