Enquanto nos enleamos em excitações nacionais catalisadas pelas redes sociais, por quem vive da espuma dos dias ou por quem pretende desviar as atenções do essencial, há toda uma realidade que se vai revelando para sublinhar a incompatibilidade das coisas.
É indigente um Estado que se permite acolher eventos lúdicos num espaço que foi consagrado a honrar a memória das principais referências nacionais. É tão indigente como a desesperante necessidade de recursos financeiros para manter a memória e o património histórico que também a sustenta, face à escassa afetação de recursos financeiros para a cultura pelo Orçamento do Estado. Para memória futura, uns abriram a possibilidade de multiuso dos monumentos e outros não a impossibilitaram, porque lhes dá jeito a receita para amansar os estados de alma de quem tem de gerir os edificados culturais. Para memória futura, ninguém aprendeu nada com os relatos de danos no património provocados pela rodagem de cenas do filme “The Man Who Killed Don Quixote”, de Terry Gilliam, no Convento de Cristo, em Tomar. Num tempo político em que se reverteu tanta coisa, é ridícula tanta atenção em relação a uma situação gerada por uma não reversão.
É incompatível continuar a proclamar amores de verão à escola pública e depois continuar a persistir que todo o enfoque seja dado aos professores, sem que aos alunos se dedique a centralidade das atenções e dos debates políticos. Não se trata de discutir anos de carreira, mas a carreira presente. Aquela que está presente nas salas atafulhadas e sem condições, nas escolas públicas que acolheram alunos das escolas privadas sem qualquer compensação nas suas condições de funcionamento ou no nauseabundo eco de refeições escolares sem mínimos de qualidade alimentar. Nessas coisas que contam para quem devia ser o centro das atenções, o que fez o Estado para avaliar a situação e agir em conformidade? Há medo de agir contra as empresas de fornecimento de refeições?
É inacreditável o silêncio comprometido dos ambientalistas que andaram a contestar a construção de barragens num momento em que é evidente a importância de existirem mais sistemas de retenção da água que, a par da melhoria da eficiência do seu uso, nos coloquem numa situação de resiliência perante as adversidades, pontuadas pelas alterações climáticas.
Por razões diversas, água e energia elétrica são absolutamente vitais para a vida humana e para os ritmos de vida como estão instituídos. É certo que o anterior governo só elevou a água a bem de interesse estratégico nacional depois de concretizar todas as privatizações, mas não é menos verdade que das dez barragens que faziam parte do Plano Nacional de Barragens, três não saíram do papel e outros três empreendimentos hidroelétricos foram parados pelo atual governo, também por acosso dos partidos que sustentam a solução governativa.
A seca que vivemos há anos e que está a ser acentuada pela ausência de precipitação neste outono sublinha ainda mais a importância estratégica do armazenamento da água, muito mais importante que qualquer preconceito ambiental, fundamentalismo na preservação de um qualquer ecossistema ou confisco por uma solução governativa de conjuntura. Há um problema sério com a água, que é central para a vida humana, para os outros ecossistemas e para a soberania do país, tão dependentes que estamos de rios que nascem em Espanha. Estes, sim, são temas a exigir debate e ação urgente: como vamos ampliar a capacidade de armazenamento de água e promover o seu uso eficiente? É que depois da ação governativa que fez perpassar a ideia de que, afinal, havia recursos quase infindáveis para virar a página da austeridade, enquanto cativava as dotações orçamentais pela calada, afirmar que ninguém vai ficar sem água nas torneiras é pouco útil para o uso eficiente da dita.
No meio deste estado de emergência e pré-emergência em torno da água para consumo e para utilização humana, onde param os ambientalistas que estão sempre contra a construção de soluções de retenção e de armazenamento da água? Certamente a exercitar a liberdade de agitar algum tema acessório ou nicho de protesto em que a árvore ignora a floresta.
Como é inacreditável a ausência de Portugal dos países fundadores da “cooperação estruturada permanente” para a defesa europeia, embrião de um reforço de integração europeia em questões militares. Podem dizer ou mandar dizer por alguma jornalista amiga que Portugal se disse favorável à ideia e vai assinar o acordo num momento posterior ao ato fundador da PESCO (Permanent Structured Cooperation), mas a verdade é que num passo importante da construção europeia, num contexto em que se questionam tantas vezes os investimentos nacionais em defesa, Portugal não esteve presente na primeira linha. Num governo tão pontuado pelo simbólico, pelo menos até aos incêndios deste verão, não estar num ato fundador de um passo importante do processo de construção europeia é contrário à matriz ideológica e à história do Partido Socialista. Foi simbólico, foi contra o património do PS de estar no centro da construção europeia. São opções, mas são sintomáticas do aprisionamento do projeto político em relação à solução governativa. São as circunstâncias do poder a sobreporem-se ao estrutural. Sem debate e pela calada, no partido e no país.
Mais uma expressão da insustentável incompatibilidade das coisas.
NOTAS FINAIS
A bota com a perdigota O anúncio de obtenção de financiamento do BEI para a ligação da Barragem do Roxo à Barragem do Monte da Rocha, em Ourique, é uma boa notícia. A água do Alqueva vai chegar ao sul do Baixo Alentejo.
O Rossio na betesga Neste como em anteriores governos, o ministro das Finanças assume papéis que no passado eram cometidos ao primeiro-ministro na configuração da margem de manobra e de ação governativa. O rapar do tacho ou o toque no fundo deste expressa-se na emergência dos desleixos, da legionela em hospital público à indigência nos meios de segurança.
Militante do Partido Socialista
Escreve à quinta-feira