Eugénio de Andrade. A medir o tesão das flores (como de costume)

Eugénio de Andrade. A medir o tesão das flores (como de costume)


A reunião da obra poética de Eugénio de Andrade é um convite demasiado apetecível a tentar e falhar, uma vez mais, no esforço de explicar a graça de um poeta que é o vagabundo de qualquer jardim, e o rei desse “instinto da diferença” que permite captar a brevidade de um instante de esplendor


O título, aí em cima, é um desses abundantes frutos que uma mão lesta (dada ao gamanço) pode puxar da árvore que até à sombra floresce. São inúmeras as evocações de Eugénio de Andrade. Há as cartas de amor – como essa, de Jorge Sousa Braga, que promete dar-lhe a morte, incapaz talvez de conter esse entusiasmo que nos faz crescer e torna excessivos, mesmo trapalhões na admiração pelo outro, tão humilhados e, ao mesmo tempo, felizes. E há as lembranças do poeta misturadas com a própria cidade, jardins e cafés a que a sua frequência transfundiu certo encanto.

Wolfgang Bächler dedica ao Porto o encontro com Andrade, “um homem seco com gestos de adolescente”. Há também aquelas sensações perduráveis derramadas no vento desta língua, e do qual, por mais que se coce nas coisas, não se liberta. Num dos mais belos poemas daquele que acabaria por ser o livro de despedida de Armando Silva Carvalho, ele vê “chegar a noite e com ela um poema do Eugénio, /magríssimo cauteloso, cioso das suas sílabas/ e da cal apagada junto à boca.”

Não acabam os exemplos, e não há como esquecer a carta de Agustina Bessa-Luís que só chegou alguns dias depois da morte do amigo, onde começa por vincar que “o melhor não são os sentimentos nobres das pessoas, mas o ácido prazer de amar seja o que for”. E notando que nunca trocaram cartas – “porque essa débil força da confidência esteve sempre para nós fora de moda” – tal como nunca deixaram que as palavras lhes dessem lições, sai-se ela com esta imorredoura noção: “A poesia não é feita de palavras, mas da cólera de não sermos deuses.”

Aqui, o tão estafado sermão aos peixinhos em que a crítica incorre, zurzindo os eventuais leitores por deixarem tanto bom autor no esquecimento, não cola. Mesmo se o poeta deixou da forma mais lapidar esse agravo (“Habito um país sem memória – alguém sabe de lugar mais triste?”),  o certo é que a poesia de Eugénio franqueou há muito um dos acessos que mais leitores atrai e converte à nossa tradição lírica. Bem cedo o discreto abalo da sua aparição foi sentida ao longo da teia entretecida entre aqueles que lêem do esplendor aos recessos mais profundos da melodia que marca uma época. Se Vitorino Nemésio o exaltou como um poeta que “trabalha num andar alto da realidade”, ainda mais longe foi outro crítico (e são tantos os que se debruçaram sobre esta obra que perdi o rasto deste) que sublinhou como em nenhum outro “a ascese da inspiração se casa tão visceralmente com a coisa real”.

Depois de a Fundação em nome do poeta ter sido extinta num desses processos que mereciam ser esmiuçados – e nunca são! – pelo muito que tresanda ao género de sacanagem e aproveitamento que caracteriza a acção das aves de rapina que cercam um poeta na hora em que este estende a mão para a aldraba da morte, por uns anos a divulgação da sua obra foi descurada. A Assírio & Alvim, que hoje, no que toca à edição de poesia, é esse bem ajardinado cemitério de elefantes, iniciou a publicação dos vários livros individualmente ou em pares, prefaciados por académicos e afins, e agora reuniu toda a sua obra poética no calhamaço da praxe. Nunca este corpo, tão dado às primeiras quanto às últimas núpcias, exigiu tanto dos braços dos seus amantes sucessivos. E talvez fosse hora de se repensar também o que quer dizer isto de se pedir aos leitores de poesia, aqueles menos interessados em compor uma estante, que larguem 40 euros por um livro. Quase exigem aos jovens iniciados que se empreguem só para custear mais esse insano vício.

Serve-nos bem relembrar agora, amanhã e depois, as palavras de Pacheco a este respeito: “festeja-se um escritor lendo-o muito e muitas vezes, dando-o a ler, editando-o em livrinhos baratos para a grande maioria e não em fascículos caros; serve-se uma obra aproximando-a de todos, em reedições cuidadas, comentadas por aparato crítico que elucide mas não fatigue”… E este apontamento final, quando aplicado a um poeta tão sedutor, torna-se especialmente incisivo. 

O prefácio coube desta vez a José Tolentino Mendonça, assinando um texto que aparece “em vez de um retrato” do poeta, e que logo no arranque nos diz que “na primeira edição canónica da sua obra, que Eugénio de Andrade quis muito ser ele a realizar, com aquele vigilante e obstinado rigor que a poesia sempre lhe exigira, o poeta não buscou o prefácio de ninguém”. Nada como a morte para nos deixar sobre a sacramental sombra de um padre. Felizmente, o prefácio é bastante anódino. Não é, de resto, entre o aparato crítico mais recentemente acoplado a esta obra que vamos buscar as suas mais penetrantes leituras. “Quase sem metáforas, a poesia de Eugénio de Andrade é uma só metáfora. Quase sem símbolos, um único símbolo. Quase sem duração, uma só duração”, escreveu Mário Sacramento. “A redução da ode ao nó-de-luz. Da poesia ao que mal chega a acontecer. Da palavra à chave mítica do real. Do gesto à gesta do fruste e quotidiano.” E continua: “branda e esparsa música de vogais em que a ‘sílaba é espessa’: ‘Que branca mão devagar/ quebra os ramos do silêncio?’ Um sussurro breve e vibrante, que prolonga o poema para além de si. Em que o não dito fala ou canta. Em que o ‘silêncio desaba’. E tudo é melodia…”

Alguns dos mais destacados ensaístas portugueses – Óscar Lopes, Eduardo Lourenço, Joaquim Manuel Magalhães, Ramos Rosa e Prado Coelho – e estrangeiros também, encontraram nesta obra essa margem tão cativante que lhes permitiu talhar os seus instrumentos para captar as notas mais subtis desta melodia.

O que há também de milagroso na obra de Eugénio de Andrade é o ter reunido à sua volta um consenso tão generalizado e que, assim mesmo, não lançou sobre ela qualquer suspeita, nem a secou ou banalizou. Há um par de versos de Herberto Helder – que numa carta a Eugénio lhe confessou a imensa estima que a sua poesia lhe merecia, afirmando que “não há nenhum poeta português que possa ombrear consigo neste meio século (Pessoa embaraça as contas quando se considera o século inteiro)” – que ilustram na perfeição o modo como esta poesia sempre se esquiva a um efeito de mortificação: “cada lenço que se ata a própria seda do lenço o desata,/ a luz que se desata”…

Foi repetido até à exaustão o quanto um obstinado rigor, uma busca incessante faz o sangue transformar-se em seiva e durar apaixonada e imortalmente no tronco altíssimo que Eugénio ergue, exigindo que na mais breve unidade “a imagem, a dicção e o ritmo se aliem” para causar no caos do mundo um desejo de sumptuosa ordem. Se esta poesia deve muito do seu fulgor à “fidelidade permanente ao espaço instantâneo em que o olhar recupera como que a visão original do mundo”, como Ramos Rosa referiu, essa ilusão é provocada pela forma como a sua sensualidade pagã converte, mesmo que de forma passageira,  os seres a quem a lucidez roubou a fé na graça da Criação. Sem nos pedir que abandonemos essa mesma lucidez, através da implacável severidade com que este poeta se coloca ao lado dos “torturados da forma”, a sua poesia é tão marcante porque restabelece o elo e a fluência entre a sacralidade dos elementos e a sua expressão mais elevada e, portanto, erótica.