O Banco de Portugal analógico


As startup financeiras vão desenvolver-se como cogumelos e infiltrar-se na atividade financeira. Qual é o perigo? Seguirem o padrão apátrida do Facebook, sem o compromisso de combate ao branqueamento de capitais e ao terrorismo


Em tempo posterior à Web Summit poderia o país estar a falar, de forma séria, do novo e desafiante tempo em que as fintech – startup financeiras (F’s) – nascerão e se desenvolverão como cogumelos, se infiltrarão na nossa atividade económica, se transformarão em pequenos camaleões a driblar a regulamentação e a iludir os elefantes regulatórios. Mas não, em Portugal, por estes dias, só temos um banco central a olhar, como um patego, para o que se passa por aí, esperando que o competente Grupo de Trabalho “Fintech e Digital Banking” possa concluir alguma coisa depois de tanto fumo saído da cabeça do administrador com a competência delegada.

Sempre que tentamos avaliar as inovações em qualquer campo, nós portugueses que não seremos menos habilitados a uma opinião sustentada, não nos faz qualquer mal auscultar os outros, verificar o caminho seguido. Recomendamos que os mais atentos se liguem ao sítio do Banco de França e se atenham às mais de 130 comunicações, estudos e notificações que este regulador já fez. Há, em Paris, três linhas de ação concreta – a primeira, a dos procedimentos de habilitação pelas empresas F; a segunda, a da validação dos agentes perante o sistema de verificação reputacional; e a terceira, a da obrigação para a literacia das empresas e dos consumidores individuais.

Em Portugal, olhado o portal do Banco de Portugal (BdP), nada mais que umas notas, poucas, acertos de ideias insuficientes e até arredados do pensamento que já se produziu. Se as lições de Madalena Perestrelo de Oliveira são insuficientes, se o pensamento de Menezes Cordeiro é elegantemente preocupante, se os conselhos de Ana Alves Leal, sobre os quês jurídicos na análise de dados, são de reconfortante valia, pouco se consagra em teologia lusa, insuficiente cultura se incorpora no falar institucional. Que posição, pensamento ou proposta existem por parte do BdP para a disseminação, utilização e transação, por exemplo, do BitCoin, quando já existem na vizinha Espanha ATM para levantamento desta moeda digital?

Estamos em finais de 2017, próximos dos tempos que a União Europeia impõe para que os países deixem de olhar de lado para o problema – a diretiva PSD2 entra em vigor no dia 13 de janeiro de 2018. Mas este mesmo problema/oportunidade não se revelou agora. Em 2015 já existiam mais de 5 mil embriões F’s em todo o mundo e tinham atingido mais de US$20 biliões de investimento. O mais encantador era o facto de já se notar uma progressiva leitura de sucesso/insucesso que se revelava no facto de 70, das mais de 5.000, valerem no mercado mais de US$100 biliões.

Quando olhávamos os “gigantes F” que em 2016 se expunham como cabeças de fila, era fácil verificar a flexibilidade dos agentes e a sua reduzida dimensão. Nem a Moven nem a Simple ultrapassavam, globalmente, os 200 mil clientes, o que se opõe aos monstros da banca tradicional, que assumem mais de 200 milhões de clientes.

As autoridades portuguesas assumem a dificuldade de acesso ao financiamento por parte das nossas empresas quando estas novas ferramentas podem, se devidamente reguladas e regulamentadas, estar ao dispor, como os empréstimos entre pares (peer-to-peer).

A implementação de aplicações que usem inteligência artificial para aconselhamento financeiro, a robotização da decisão de transacções, entre outros aspectos que já é realidade (e não ficção) científica e o negócio das Fintech é – dados. Não é dinheiro, não é serviços, não é remuneração dos poderes públicos, não é estudo da economia, não é influência. Assim, aceder a recursos para incrementar ideias e negócios é incomensuravelmente mais barato, desprovido das cargas incessantes de níveis hierárquicos de decisão.

Quando as F’s iniciam um processo de análise de crédito e risco que incorpora as redes sociais, a geolocalização, o comportamento de navegação micro, estamos perante a reinvenção do mercado de serviços financeiros, estamos a retirar a gravata, o almoço e as imensas reuniões que antecedem o poder de conceder.

As F’s afirmam-se como elementos na margem do “crime”. Não se trata de uma visão penal da atividade, trata-se, tão só, de escolherem o ponto em que não se expõem ao poder da regulação e ao impacto nefasto da reputação do regulador. O que quer isto dizer? Nas F’s o regulador é tão grande que se afirma irrelevante.

Qual é o perigo que iremos verificar? A universalização do negócio, seguindo o padrão apátrida do Facebook, por exemplo, leva a que se possa obter recursos financeiros sem o compromisso com o combate ao branqueamento de capitais e ao terrorismo, sem a observação, por um só supervisor, da ação concertada entre países e continentes.

Quando olhamos para o sucesso ou insucesso da Cont Azul ou da Zero Paper, que até falam português, o que poderemos perguntar é se Portugal está já, ou pode estar, à margem das obrigações comunitárias na relação de mercado com o Brasil. Sim, em nossa opinião está e esse afastamento vai ser cada vez mais nítido. A arquitetura europeia da supervisão financeira assenta numa estrutura decisória centralizada (em Frankfurt) e de ação local (pelos bancos centrais), pelo que no seu processo final, será tão útil como, no início do século XX, uma produção de carroças ao lado da fábrica do Ford T.

Há uns meses um administrador do BdP dizia que as F’s se assumem como que a “uberização” dos serviços financeiros. Que desmiolado comentário. Se os poderes públicos, conhecendo a realidade da “uberização” do transporte individual conhecem as inúmeras circunstâncias em que cada país gere as relações entre os operadores tradicionais e os “pós-contemporâneos”, o que se espera das mesmas F’s em tempos próximos?

Carlos Costa devia ter dormido mal quando entregou a Helder Rosalino a gestão do processo F’s. Diz este ilustre sábio, Nobel em Física e Química: “Este tema… está na agenda da Comissão Europeia que tem feito questionários sobre o tema e estudos.” Diz também: “Há um entendimento europeu de que não é desejável uma intervenção prematura porque pode prejudicar a inovação e os novos entrantes, vital para o setor financeiro, e a Europa está atrasada em relação aos EUA”. E diz ainda mais: “Os bancos estão a ficar preocupados, mas os bancos vão passar por várias fases, em primeiro lugar a fase da indiferença, depois a fase da irritação e, finalmente, vão passar para outra fase, em que percebem eles próprios que as fintech vieram para ficar”. Esta é a frase lapidar – também aqui, nesse conceito de “bancos” se insere o banco central português. Quando chegar à ultima fase já muito se passou e já muitos foram enganados sem uma palavra do supervisor. Com esta gente, que se contenta com questionários, o colchão torna-se, cada vez mais, um interessante depositário das nossas poupanças.

Deputado do PS