Lisboa. Vou começar por Lisboa. Podia também começar por Hanley, Stoke-on-Trent, Staffordshire, onde nasceu Stanley Matthews. Sir Stanley Matthews jogou por duas vezes em Lisboa, ainda não era Sir, mas o Sir fica-lhe bem, deixá-lo estar, uma ao serviço da seleção da RAF (Royal Air Force) e outro ao serviço da Inglaterra, marcando o último dos dez infamantes golos à Seleção Nacional, naquele terramoto do Jamor em 1947 – 0-10, cinco em cada parte, o desafio que se transformou em dez-a-fio.
Certa noite, na companhia de dois colegas – Phil Taylor e Laurie Scott – puxava umas fumaças à porta do Hotel Estoril-Sol, onde os ingleses tinham ficado instalados, com vista para o mar.
Apreciavam a temperatura amena mas nem então lhes deram sossego. Um agente da autoridade quis inspecionar o seu isqueiro. Perguntou-lhe pela licença. Matthews ficou furibundo.
Nunca lhe passou pela cabeça que houvesse um país no qual fosse preciso uma autorização oficial para fazer funcionar a pedra do isqueiro.
Há vários livros publicados sobre Stanley Matthews, mas apenas uma autobiografia: The Way it Was. Foi nela que encontrei este episódio. Matthews pode ter ganho o encontro por dez-a-zero mas saiu de Portugal irritado. Não apenas por causa do isqueiro mas também por ter sido impedido de dar uns mergulhos só de calções. Nesse tempo não se permitia, por aqui, andar em tronco nu.
Em Inglaterra há um verdadeiro fascínio por Stanley Matthews. Faz parte de um futebol que já não há. E não só. Enquanto o mundo se deixava encantar pelo estilo de jogo dos sul-americanos (argentinos, uruguaios, brasileiros) e desprezava essa teoria primária britânica do kick-and-rush, Matthews era um mestre do futebol malandro. Por isso o alcunharam ‘The Wizzard of the Drible’: o ‘Feiticeiro do Drible’.
Recentemente, surgiu mais um documentário sobre Stanley Matthews. Um documentário em forma de longa metragem: The Original n.º 7. Afinal foi Matthews que transformou esse número num mito.
Milhares de episódios se conhecem sobre o ‘Feiticeiro do Drible’. Desde ter-se transformado no primeiro futebolista a ser ordenado Cavaleiro pela Rainha à sua vitória na Taça de Inglaterra, já com 50 anos, pelo Blackpool, num tempo em que, dizia, se alimentava à custa de sumo de cenoura, algo de mais próprio de um cavalo do que de um cavaleiro, mas enfim.
No entanto, as suas aventuras africanas ficaram um pouco distantes da visão geral da sua carreira, talvez porque entraram no seu campo como treinador e não como jogador.
A verdade é que, quando se fala de Stanley Matthews, não é fácil distinguir entre a realidade e a lenda. Ele próprio em The Way it Was trata de esclarecer determinados exageros que se lhe colaram à pele. Como aquela versão de que teria por hábito, para aporrinhar os adversários, passar a mão pelo cabelo antes de lhes aplicar um dos seus dribles enfeitiçados. «Aconteceu num jogo em Turim, frente à Itália, em maio de 1948. Estádio a rebentar pelas costuras. A Itália tinha uma equipa terrível! Quase no final do encontro, já estávamos a ganhar por 4-0, recebi a bola junto à linha e corri em direção à bandeirola de canto. Eliani, o defesa esquerdo aproximou-se mas deixou-me demasiado espaço livre. Estava um calor monstro e o suor corria-me pela testa. Limpei a mão aos calções e afastei as gotas que tinha junto ao cabelo. Nunca mais me recordei do episódio até que, no final dos anos 60, vivia eu em Malta com a minha segunda mulher, fui apresentado a um membro do Governo maltês. O homem quase se pôs em sentido: ‘Incrível aquilo que o vi fazer contra a Itália – tirar um pente do bolso e pentear-se antes de aplicar uma finta foi algo que fica para a história do futebol’».
Lá está: o futebol presta-se a exageros, tal como quase tudo na carreira de um feiticeiro.
Em África
Mas vamos a África. O novo documentário gigante sobre Matthews, produzido pelo seu filho, também ele Stanley, conta com a intervenção de Richard Branson, Michael Parkinson e Gary Lineker. Claro que começa na sua difícil infância em Stoke-on-Trent e passa pelos seus grandes momentos ao serviço do Stoke, do Blackpool, da seleção inglesa e pelos seus seis anos na Royal Air Force, que também foram aproveitados para muitos jogos de futebol. «Era o A/C 1361317 S. Matthews da RAF, com o posto mais baixo da hierarquia, o que até me deu jeito porque havia muita inveja e ressentimento em meu redor», escreveu.
E contou, mais tarde, sobre África, já depois de abandonar a carreira: «No total, passei todos os verões durante 25 anos como treinador em África, em países como a África do Sul, Nigéria, Quénia, Gana, Uganda ou Tanzânia. Nunca o fiz por dinheiro. Apenas por prazer».
Soweto – é a contração de South West Townships. Colado a Joanesburgo. «Um grupo de antigos jogadores troca bolas numa rua empoeirada. São os guardiões de uma história que o resto do mundo resolveu esquecer. Passou-se em 1975 e Sir Stanley Mathews driblou as regras do apartheid, ignorou a lista negra das Nações Unidas, e viveu com dois membros da polícia secreta a segui-lo por toda a parte». Este é um dos resumos de The Original n.º 7.
Matthews multiplica páginas das suas memórias falando do seu tempo em África e, em particular, no Soweto. Fala do seu motorista, chamado Sam, que o conduzia no Land Rover que lhe tinha sido alocado. Às vezes esperava por Sam durante horas. Um belo dia fartou-se. Dirigiu-se a uma casa vizinha e pediu para lhe chamarem um táxi pelo telefone. Veio o táxi: era o seu Land Rover, com Sam ao volante. Aproveitava as horas dos treinos para fazer um dinheirinho extra.
É uma parte da vida do ‘Feiticeiro do Drible’ menos conhecida. Ele assumia-se como um «missionário do futebol». E confessa que aprendeu, no meio de situações de pobreza extrema, lições de um orgulho ímpar. Como o miúdo que sonhava jogar um dia no Brasil e conhecer Pelé. «Acha que vou conseguir?», perguntou-lhe certa vez. E Stanley respondeu. «Claro que vais! No futebol, como na vida, se sonhas com o tecto muito provavelmente não tirarás os pés do chão. Mas sonha com o céu e atingirás o topo».