Em 1950, a PIDE assassinou José Moreira, operário vidreiro, funcionário do Partido Comunista Português, responsável pelas ligações com as tipografias clandestinas. Pouco antes da sua prisão, José Moreira tinha escrito: “Uma tipografia clandestina é o coração da luta popular. Um corpo sem coração não pode viver.” Interrogado brutalmente pela PIDE, não falou e não entregou as tipografias clandestinas às mãos criminosas da polícia política de Salazar. Selvaticamente espancado e torturado até à morte, o seu cadáver foi atirado pela janela da sala de interrogatórios a fim de fazer crer que se tratava de um suicídio.
Na Rua António Maria Cardoso, a antiga sede da PIDE, lugar onde a polícia política tinha arquivos, salas de interrogatórios e onde milhares de pessoas foram torturadas e algumas delas chegaram a ser assassinadas, foi transformada em condomínio de luxo. Foi proposto há poucos anos – ideia por enquanto abandonada – que o Forte de Peniche, onde estiveram presas gerações de oposicionistas, se convertesse numa pousada de charme. Somos, portanto, um país onde a memória histórica e o sofrimento de inúmeras gerações para que possamos viver melhor são apagados. Como é ignorado tudo o que nos possa fazer interrogar sobre páginas terríveis do nosso passado.
“São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão preta. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio da cosmética da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo.” Assim é descrito o momento do suplício, em pleno centro de Lisboa, onde se queimavam hereges, e quando Blimunda quer voar para fora deste mundo, nas páginas do “Memorial do Convento”, de José Saramago. Há, neste local que figura nas páginas do escritor ribatejano, um monumento discreto a assinalar os milhares de pessoas, entre os quais muitos judeus, que morreram queimadas vivas em autos de fé promovidos pela Inquisição, nessa acanhada praça ao lado do Rossio.
São vários os exemplos dessa operação ideológica de desmemória, mas talvez nenhum seja de tal forma gritante como a total ausência de um museu sobre a escravatura. Fomos um país esclavagista que enriqueceu com o tráfico de escravos, e embora tenhamos traços na toponímia urbana do chicote da História, como a Rua do Poço dos Negros, que alude ao sítio onde os corpos dos escravos mortos eram deitados fora, não temos, nem vamos ter tão cedo, nenhum museu sobre escravatura, colonialismo ou racismo.
Não se percebe muito bem a dimensão gigantesca do escândalo existente com a utilização, por parte da organização do Web Summit, do Panteão Nacional para um jantar temático tipo Harry Potter. Aliás, há um preçário para empresas e particulares poderem realizar banquetes, festas, despedidas de solteiro, casamentos e outros eventos alegrotes em monumentos nacionais. O preçário, com a indicação de que o Estado pode vetar iniciativas que considere menos dignas, foi regulamentado pelo anterior governo. Mas a situação não é de agora. Há umas décadas foram rodados filmes porno no Palácio de Queluz, o que na altura só deu algumas notícias prazenteiras no antigo, e já extinto, semanário “Tal e Qual”.
A nossa ideia do património e do edificado em geral é que aquilo é bom para turistas e empresários visitantes. O lugar que nos foi garantido na cadeia da divisão internacional do trabalho, pela globalização e pela integração europeia, devido às nossas especiais condições climatéricas e à docilidade inata dos autóctones, é sermos servidores de copos e aperitivos em restaurantes very typical, iguais aos que há em toda a Europa mas decorados com uns psichés locais, e que estejam preferencialmente perto de paredes que “tenham história”, pois parece que os locais perderam a memória e a capacidade de produzirem a sua própria história e só lhes resta serem cenários das férias dos outros. A única coisa que se exige a cada trabalhador precário nacional é que seja simpático, serviçal e capaz de servir gins com os atuais 45 condimentos, temperos e passos necessários para a sua elaboração, segundo os atuais padrões europeus. Regra geral, como diz o proprietário da Padaria Portuguesa, os trabalhadores locais, mais do que receberem um salário, têm a sorte de estarem num sítio onde “o espírito de equipa vale muito mais que o salário-base”.
Felizmente, vivemos numa sociedade onde já é possível denunciar os abusos de poder de produtores e estrelas de Hollywood que se valiam do seu poder para conseguirem coagir mulheres a praticarem atos sexuais ou serem obrigadas a trabalhar em condições sexualmente humilhantes. Tivemos a oportunidade de ver a modelo Sara Sampaio denunciar no Web Summit que, embora as modelos femininas ganhem mais que os homens, são permanentemente coagidas a aceitarem condições de trabalho humilhantes. “Devia ser ok não querer mudar de roupa à frente de quem não conheço mas, se peço um sítio recatado, dizem que sou diva”, denunciou Sara Sampaio.
Infelizmente, para a organização que permite esta denúncia é normal ter milhões de euros de subsídios e receitas ao mesmo tempo que “contrata” centenas de voluntários para trabalhar de borla.
Mais do que quererem comer num cenário histórico, na companhia de túmulos “dos grandes de Portugal”, o pecado da organização do Web Summit é sobretudo um total desrespeito pelos vivos, defendendo que nas atuais condições de modernidade é natural trabalhar de borla para eventos de empresas lucrativas e com prestígio. Noutras espécies animais é normal que os elementos mais fortes tenham acesso a mais comida e a mais sexo. O capitalismo em geral não faz mais que emular este estado selvagem, tanto entre os produtores de cinema como no trabalho em eventos lucrativos: espera-se que uns tenham tudo e que os outros tenham de estar caladinhos.
O esvaziar da memória, seja na transformação das paredes de uma cidade, quer Lisboa ou Veneza, em meros cenários sem alma e história da gente que lá viveu, seja no esvaziar e no silenciamento deturpador de acontecimentos históricos como a Revolução Russa de 1917, é muito mais que uma manifestação de ignorância, é sobretudo uma operação ideológica que conduz à manutenção do poder das elites dominantes.
Na cidade de Lisboa, esta operação urbana justificada pelo turismo significa uma autêntica contrarrevolução que despeja para fora da cidade a grande maioria das classes populares. É óbvio que o turismo acaba por ser a boia de salvação de milhares de pessoas, mas ela torna-se única e importante fonte de emprego depois de um processo prévio que destruiu a maioria das atividades produtivas da cidade que não estão ligadas ao setor dos serviços. Na História, a destruição do passado serve para que toda a gente ache que a exploração do presente e as condições de trabalho precárias em que se vive são a forma normal e eterna da realidade. A criação do “presentismo” em que vivemos é uma operação ideológica feita para esquecermos o passado e liquidar qualquer ideia de projeto de mudança e aquilo a que comummente se chama futuro.
No seu livro “Mélancolie de Gauche”, o historiador Enzo Traverso defende que é preciso inscrever os acontecimentos do passado na consciência histórica para assim os projetar no futuro. A derrota da Revolução Soviética quebrou esta continuidade histórica e cria um regime de uma espécie de presente eterno e a existência de uma permanente greve dos acontecimentos. Vivemos num “presentismo”, um regime ditatorial em que desapareceu o futuro e se esconde o passado. Quebrar esta prisão exige, tal como defendia Walter Benjamin, fazer a redenção do passado e de todos aqueles que nele combateram e foram derrotados.