Um dia na pele dos lesados


Deve haver um subconsciente luso da luta de classes que persegue (provavelmente com o aplauso da gémea dada às ocupações) o pouco capital que ainda por cá resta


Há um aforismo que diz que não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe.

De qualquer maneira, da espuma dos nossos dias o que parece acontecer é que o princípio e o fim dos ciclos que o bom aforismo presume tendem a durar demais.

Não sendo chineses, a quem a sabedoria popular lhes formatou já a paciência para uma compreensão duma certa relatividade relativamente ao tempo e ao espaço, a verdade é que os ocidentais e, para o caso, muito propriamente os portugueses, não estão formatados para as sucessivas desventuras que o país em catadupa lhes vai reservando.

É evidente que há um certo prazer mórbido, agora, em ir lendo ou ouvindo as tais escutas que aqui e ali ilustram o mediático processo do nosso antigo primeiro-ministro e seus comparsas nessa antologia do nepotismo delirante.

De certa forma, mas não só, a crónica desta semana visita os tempos, agora dolorosos, das negociatas da venda da Vivo e da compra da Oi e dos 800 milhões de euros da PT que se diluíram (às mãos de vários agora arguidos) no desastre do BES/GES.

É que, com relativamente diminuta difusão pública, acabou por estes dias o processo através do qual os obrigacionistas do colosso pós-socrático, pós-PT e pós-golden share – e, a acreditar na acusação do tal processo mediático, pós- -saco azul, pós-prémios de gestão e muito mais – chamado OI foram convidados ou porventura coagidos, atenta a hipótese B, a “lamber as suas” feridas, aceitando as pesadas perdas que os premiados gestores, que aparentemente recusam devolver parte desses prémios, lhes provocaram neste joguete de financeiros dementes, urdido com as suas poupanças.

Esta referida notícia, que apesar de tudo ainda paga até cerca de 12 mil euros, seria, apesar de tudo, uma boa notícia, no confronto da perda de outros valores de investimento que se esfumaram no tempo e no espaço como, por exemplo, a capitalização bolsista do BES, que fez perder as acções às pessoas que nunca ditaram, nem podiam, uma opção que fosse do destino do mesmo.

Bem sei que é discutível, de um determinado ponto de partida (e sempre partindo do princípio de que o regulador faz o seu trabalho bem feito, o que não parece ter sido exactamente o caso), que se faça repercutir sobre quem quer que seja as opções de investimento que se tomam com os capitais próprios no negócio especulativo. No entanto, e não tomando uma posição de fundo sobre esta questão, a saga a que voltarei dos obrigacionistas Oi lembrou-me a tal promessa do PM de pagar aos lesados do papel comercial GES que se arrasta no tempo sem notícias recentes.

Aparentemente, nem todas as palavras dadas são honradas à mesma velocidade.

E, por isso, não posso deixar de, de alguma forma, enaltecer o facto de a Oi ir pagar em cerca de 15 dias aos aderentes uma parcela até aos tais cerca de 12 mil euros a quem, não é de menos referir, as jogadas palacianas dos senhores arguidos exauriram percentagens muito relevantes das poupanças (algumas de uma vida) aplicadas no seu negócio e nos dos seus accionistas e associados.

Para este efeito, a Oi, através dos seus advogados e dos consultores de mediação do processo, organizou um sistema de acreditação online (de difícil utilização para cidadãos seniores) que tramitava vários passos até um muito difícil agendamento presencial, com hora marcada, para assinatura do contrato de transacção, que deixava supor um final tranquilo para o processo.

A verdade, porém, é que rapidamente o referido processo perdeu toda a eventual aura de organizada sofisticação e respeito, do acesso à distância e da marcação online da hora para o acto solene da celebração do acordo em que os credores aceitariam, sem outra hipótese, um pesado haircut no empréstimo que fizeram à sociedade que lhes pulverizou tal valor.

Ou seja, apesar das atarefadas equipas de advogados a fazerem o papel de recepcionistas de luxo e tarefeiros administrativos, a verdade é que os obrigacionistas a quem o acordo espoliava parte relevante do investimento e, por maioria, das suas poupanças, tanto maior quanto o valor investido, já que os tais cerca de 12 mil euros eram iguais para todos.

E a verdade é que, apesar da hora marcada pelos representantes da Oi, os obrigacionistas, seus credores e cujo dinheiro eles já não devolverão na totalidade suportaram, para receber a tal tranche, primeiro, o atraso logo relativamente à hora marcada para acederem à primeira de três estações da mediação, de onde saíam para, horas depois, assinarem, solitariamente, o acordo que reconhece um pesado perdão de dívida, e ainda nova espera para receberem o mesmo acordo já assinado pelo ausente e muito importante representante da Oi, que nunca apareceu aos comuns mortais.

Ossos do meu ofício fizeram-me experimentar, atónito e incrédulo, este calvário de sábado à tarde.

Ao meu lado estavam, em Lisboa, nestas instalações quentíssimas, sobrelotadas e com poucas cadeiras (no tal respeito institucional que neste país se tem pelos enganados,) pessoas da Guarda, Penafiel, Elvas, Porto e muitos mais sítios que eu não ouvi.

Eu esperei cerca de cinco horas para conseguir todas as assinaturas, mas algumas pessoas que tinham hora marcada às 11h30 da manhã saíram das Amoreiras depois das 19h.

É que já não bastava não pagarem o que devem, ainda tinham de castigar os credores nas poupanças de quem trabalhou.

Deve haver um subconsciente luso da luta de classes que persegue (provavelmente com o aplauso da gémea dada às ocupações) o pouco capital que ainda por cá resta.

Será verdade que não há mal que sempre dure… mas parece.

Há um ditado popular que diz que o pão do pobre cai sempre com a manteiga para baixo.

 

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990