O centralismo presidencial


Depois de concluída a sua legitimação mediática e popular, o Presidente Marcelo parte agora para a gestão política do papel centralizador que adquiriu e exerce


Já não tenho dúvidas: a interpretação que Marcelo Rebelo de Sousa faz do mandato presidencial traduzir-se-á num dos períodos mais estimulantes da história democrática recente. Quem acompanhou Mário Soares no exercício da função encontrará manifesta inspiração. Quem percebeu Jorge Sampaio e Cavaco Silva no acompanhamento da vida governativa e parlamentar identificará laivo de motivação. Mas o entendimento é, desde a primeira hora – diria até desde que Marcelo soube que António Guterres não avançaria e José Sócrates estava bloqueado -, único e exclusivo de Marcelo. E tudo indicava que não podia ser diferente do que está e continuará a ser. 

Marcelo foi eleito sem máquinas partidárias porque viveu à custa da intermediação dos média televisivos desde que saiu da liderança do PSD e se desencantou com essas máquinas. Adquiriu substrato próprio e identidade diferenciadora. As homilias político-globais de comentário nos ecrãs converteram-se numa extensa agenda de comunicação e personalização: primeiro, quase sozinho, em campanha pré-eleitoral e eleitoral; depois, assessorado após a eleição, em campanha constitucional. Antes acompanhava e apreciava os factos políticos, judiciais, culturais e desportivos; a partir da Presidência, olha para a Constituição, que diz ser ato próprio do PR “pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República”, e intervém extensivamente em todas as circunstâncias emergentes da vida da República. É uma questão de leitura, mas essa extensão leva-o à rua, à reunião, ao hospital, à escola, ao estádio, à empresa, à cerimónia institucional e à aldeia da ruína, como o leva ao Conselho de Estado, ao parlamento e à sessão com o primeiro-ministro. Sai-lhe da resistência física e intelectual, em troca da abrangência mediática e do achego popular. Para Marcelo, a função de PR não se basta com a legitimidade democrática da eleição válida e maioritária. Tem de se legitimar dia após dia, encontro após encontro, beijo e cumprimento após outro e mais outro, autenticando-se em intervenções que arquiteta e desenvolve no seu fio condutor. Antevê e dispara. Condiciona e propõe. Provoca e responde. Acha bem ou deixa para depois. Nesse processo tornou-se, em tempo célere, no barómetro, sem filtros, ao vivo e a cores. Sem pensar na renovação presidencial. Preocupado em avaliar (como fez toda a vida) e autenticar, como se de um notário superior se tratasse. Para os constitucionalistas (como foi toda a vida), deve ser um bom desafio esta Presidência.

Com este processo de legitimação concluído – que teve o seu epílogo na omnipresença nas sequelas das tragédias dos fogos, relativamente aos quais teve certamente a intuição de ser dinamizador da mudança e da exigência -, Marcelo passará agora à segunda fase: a centralização. Isto é, à gestão do papel central com que se legitimou junto do governo e dos partidos. Agora já estará fora da Constituição, a administrar política e interesses políticos. E nessa administração quererá determinar o que melhor serve a função presidencial no mandato posterior às eleições de 2019. Será uma maioria absoluta de Costa ou uma maioria do PS com BE ou PCP? Será uma maioria de PSD e CDS? Será uma maioria de PS com CDS, desviando Costa do entendimento à esquerda e das cedências que se obriga a fazer (pelo menos) anualmente? Será uma maioria PS com PSD mais pujante depois de nova liderança?

Desse seu juízo se compreenderá o que dirá e fará. Chegou aqui com esse poder. O presidencial e o popular. Em nome do povo e da República, influenciará e intervirá. Habitue-se quem vier a seguir: o centralismo presidencial chegou para ficar.

 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra

Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira


O centralismo presidencial


Depois de concluída a sua legitimação mediática e popular, o Presidente Marcelo parte agora para a gestão política do papel centralizador que adquiriu e exerce


Já não tenho dúvidas: a interpretação que Marcelo Rebelo de Sousa faz do mandato presidencial traduzir-se-á num dos períodos mais estimulantes da história democrática recente. Quem acompanhou Mário Soares no exercício da função encontrará manifesta inspiração. Quem percebeu Jorge Sampaio e Cavaco Silva no acompanhamento da vida governativa e parlamentar identificará laivo de motivação. Mas o entendimento é, desde a primeira hora – diria até desde que Marcelo soube que António Guterres não avançaria e José Sócrates estava bloqueado -, único e exclusivo de Marcelo. E tudo indicava que não podia ser diferente do que está e continuará a ser. 

Marcelo foi eleito sem máquinas partidárias porque viveu à custa da intermediação dos média televisivos desde que saiu da liderança do PSD e se desencantou com essas máquinas. Adquiriu substrato próprio e identidade diferenciadora. As homilias político-globais de comentário nos ecrãs converteram-se numa extensa agenda de comunicação e personalização: primeiro, quase sozinho, em campanha pré-eleitoral e eleitoral; depois, assessorado após a eleição, em campanha constitucional. Antes acompanhava e apreciava os factos políticos, judiciais, culturais e desportivos; a partir da Presidência, olha para a Constituição, que diz ser ato próprio do PR “pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República”, e intervém extensivamente em todas as circunstâncias emergentes da vida da República. É uma questão de leitura, mas essa extensão leva-o à rua, à reunião, ao hospital, à escola, ao estádio, à empresa, à cerimónia institucional e à aldeia da ruína, como o leva ao Conselho de Estado, ao parlamento e à sessão com o primeiro-ministro. Sai-lhe da resistência física e intelectual, em troca da abrangência mediática e do achego popular. Para Marcelo, a função de PR não se basta com a legitimidade democrática da eleição válida e maioritária. Tem de se legitimar dia após dia, encontro após encontro, beijo e cumprimento após outro e mais outro, autenticando-se em intervenções que arquiteta e desenvolve no seu fio condutor. Antevê e dispara. Condiciona e propõe. Provoca e responde. Acha bem ou deixa para depois. Nesse processo tornou-se, em tempo célere, no barómetro, sem filtros, ao vivo e a cores. Sem pensar na renovação presidencial. Preocupado em avaliar (como fez toda a vida) e autenticar, como se de um notário superior se tratasse. Para os constitucionalistas (como foi toda a vida), deve ser um bom desafio esta Presidência.

Com este processo de legitimação concluído – que teve o seu epílogo na omnipresença nas sequelas das tragédias dos fogos, relativamente aos quais teve certamente a intuição de ser dinamizador da mudança e da exigência -, Marcelo passará agora à segunda fase: a centralização. Isto é, à gestão do papel central com que se legitimou junto do governo e dos partidos. Agora já estará fora da Constituição, a administrar política e interesses políticos. E nessa administração quererá determinar o que melhor serve a função presidencial no mandato posterior às eleições de 2019. Será uma maioria absoluta de Costa ou uma maioria do PS com BE ou PCP? Será uma maioria de PSD e CDS? Será uma maioria de PS com CDS, desviando Costa do entendimento à esquerda e das cedências que se obriga a fazer (pelo menos) anualmente? Será uma maioria PS com PSD mais pujante depois de nova liderança?

Desse seu juízo se compreenderá o que dirá e fará. Chegou aqui com esse poder. O presidencial e o popular. Em nome do povo e da República, influenciará e intervirá. Habitue-se quem vier a seguir: o centralismo presidencial chegou para ficar.

 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra

Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira