Não vivo com uma espada sobre a cabeça. Na minha cabeça só cabem flores


Gostamos de validar as nossas vidas com dor. Gostamos de encher as mochilas com o desnecessário e de o levar para todo o lado 


Há muitos anos, no verão, quando as pessoas tinham mais tempo e brincavam como gente feliz, a minha família reuniu-se para o evento mais emocionante de sempre: uma corrida familiar, muito embaraçosa por sinal, cujos concorrentes tinham de cumprir a regra de … transportar garrafas em cima da cabeça! Imaginam a cena? Os adultos levavam garrafas de 1,5 l cheias (os mais loucos agarravam-se às de vinho), enquanto tentavam chegar à meta. A garrafa não podia ser agarrada e, claro, não podia cair. Incrivelmente, a minha mãe ganhava quase sempre e ainda abrilhantava a sua prestação, levantando as pernas e os braços, como uma verdadeira atleta, exibindo os seus dotes de equilibrista. Esta foi a única vez que senti que era permitido ter algum peso na cabeça: quando se entretém a família (mesmo que as figuras não sejam as melhores). De outra forma, nunca quis ter nada por cima da cabeça e, não sei porquê, as pessoas gostam de dizer que é lá que guardam as espadas. 

Quando entrei no mundo do cancro comecei a ouvir muitas coisas e tive de aprender a filtrar, porque muito daquilo que ouvia não me interessava. Sou meio paranoica e, se fixo essa palermice, sei que vou passar a tarde a olhar para cima, para ver se a espada ainda lá está. Não, não, não dá para mim – nada de espadas, só mesmo flores, que não pesam nada. Sei que as pessoas que dizem estas e outras coisas preferiam que nenhum objeto estivesse na iminência de lhes destruir o crânio, mas talvez o digam por hábito. É o hábito o verdadeiro peso. (O Tiago, por exemplo, tem uma sina com cocó de pombo, a sério, é perseguição, mas de resto, cá em casa, só as nuvens e o sol é que nos sobrevoam.)

Esta coisa de carregar coisas nas costas, por cima da cabeça, nas pernas e nos pés é tão nosso. Gostamos de validar as nossas vidas com dor. Gostamos de encher as mochilas com o desnecessário e de o levar para todo o lado, mesmo sem ser preciso carregar tanta coisa, tantas emoções, tantos traumas, tantas tretas. Às vezes, a nossa história pode ficar à porta, os nossos medos não são chamados para a conversa, as nossas dificuldades não interessam. Não temos de levar tudo o que nos pertence, o que nos faz gente, para todo o lado. Não temos de abrir o armário e despejar todas as roupas para dentro da mala, porque só iremos estar fora três dias. Não temos de carregar connosco sempre tudo aquilo que nos magoa. Não temos de ter uma espada por cima da cabeça, assumindo que “agora sim, a minha vida tem uma má notícia extra”. Podemos olhar para cima e não ver nada, nada que nos sobrecarregue mais. Ou podemos até olhar para cima e só ver esperança, e estar expetante com o que aí vem. 

Não descobri que tinha uma espada por cima da minha cabeça quando me foi diagnosticado cancro, mas percebi que tinha muitas pessoas à minha volta, muitas bases a sustentarem o meu próprio corpo, muitos sonhos pela frente. Mas, por cima, nada. Nada que me fizesse peso ou me diminuísse de tamanho. Nada que me assustasse. Só coisas boas podem andar lá por cima, só coisas boas é que me fazem espreitar mais alto. Como quando vejo um avião e imagino a minha irmã a chegar, ou fecho os olhos e vejo melhor porque a sinto comigo. Só assim.

 

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Escreve à quinta-feira


Não vivo com uma espada sobre a cabeça. Na minha cabeça só cabem flores


Gostamos de validar as nossas vidas com dor. Gostamos de encher as mochilas com o desnecessário e de o levar para todo o lado 


Há muitos anos, no verão, quando as pessoas tinham mais tempo e brincavam como gente feliz, a minha família reuniu-se para o evento mais emocionante de sempre: uma corrida familiar, muito embaraçosa por sinal, cujos concorrentes tinham de cumprir a regra de … transportar garrafas em cima da cabeça! Imaginam a cena? Os adultos levavam garrafas de 1,5 l cheias (os mais loucos agarravam-se às de vinho), enquanto tentavam chegar à meta. A garrafa não podia ser agarrada e, claro, não podia cair. Incrivelmente, a minha mãe ganhava quase sempre e ainda abrilhantava a sua prestação, levantando as pernas e os braços, como uma verdadeira atleta, exibindo os seus dotes de equilibrista. Esta foi a única vez que senti que era permitido ter algum peso na cabeça: quando se entretém a família (mesmo que as figuras não sejam as melhores). De outra forma, nunca quis ter nada por cima da cabeça e, não sei porquê, as pessoas gostam de dizer que é lá que guardam as espadas. 

Quando entrei no mundo do cancro comecei a ouvir muitas coisas e tive de aprender a filtrar, porque muito daquilo que ouvia não me interessava. Sou meio paranoica e, se fixo essa palermice, sei que vou passar a tarde a olhar para cima, para ver se a espada ainda lá está. Não, não, não dá para mim – nada de espadas, só mesmo flores, que não pesam nada. Sei que as pessoas que dizem estas e outras coisas preferiam que nenhum objeto estivesse na iminência de lhes destruir o crânio, mas talvez o digam por hábito. É o hábito o verdadeiro peso. (O Tiago, por exemplo, tem uma sina com cocó de pombo, a sério, é perseguição, mas de resto, cá em casa, só as nuvens e o sol é que nos sobrevoam.)

Esta coisa de carregar coisas nas costas, por cima da cabeça, nas pernas e nos pés é tão nosso. Gostamos de validar as nossas vidas com dor. Gostamos de encher as mochilas com o desnecessário e de o levar para todo o lado, mesmo sem ser preciso carregar tanta coisa, tantas emoções, tantos traumas, tantas tretas. Às vezes, a nossa história pode ficar à porta, os nossos medos não são chamados para a conversa, as nossas dificuldades não interessam. Não temos de levar tudo o que nos pertence, o que nos faz gente, para todo o lado. Não temos de abrir o armário e despejar todas as roupas para dentro da mala, porque só iremos estar fora três dias. Não temos de carregar connosco sempre tudo aquilo que nos magoa. Não temos de ter uma espada por cima da cabeça, assumindo que “agora sim, a minha vida tem uma má notícia extra”. Podemos olhar para cima e não ver nada, nada que nos sobrecarregue mais. Ou podemos até olhar para cima e só ver esperança, e estar expetante com o que aí vem. 

Não descobri que tinha uma espada por cima da minha cabeça quando me foi diagnosticado cancro, mas percebi que tinha muitas pessoas à minha volta, muitas bases a sustentarem o meu próprio corpo, muitos sonhos pela frente. Mas, por cima, nada. Nada que me fizesse peso ou me diminuísse de tamanho. Nada que me assustasse. Só coisas boas podem andar lá por cima, só coisas boas é que me fazem espreitar mais alto. Como quando vejo um avião e imagino a minha irmã a chegar, ou fecho os olhos e vejo melhor porque a sinto comigo. Só assim.

 

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