A jovem mulher que cantava o "Avante Camarada" de olhos fechados na noite de 7 de novembro no balcão do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, simbolizava mais do que os discursos (foram três), as canções revolucionárias, o cantor "soviético", "A Bandeira Comunista" de José Carlos Ary dos Santos, declamada pela voz do próprio e terminada em coro por todos, os fortes aplausos para Álvaro Cunhal sempre que este aparecia em vídeo ou em palavras, ou todas as outras coisas ditas e feitas nessa sala bem composta até às galerias: a Revolução de Outubro está viva; o comunismo, o sonho de um mundo novo, continua a sentir-se com fervor.
"Alguns decretaram a morte do comunismo", afirmou Jerónimo de Sousa no seu discurso, mas não só este não morreu como "o PCP continua de pé, a viver e a lutar, não apenas resistindo, mas fazendo acontecer, mantendo no horizonte sempre e sempre o objetivo do socialismo". E aos "sonhadores da morte", àqueles "profetas do declínio", o líder do PCP deixou a simples mensagem: "aqui estamos e estaremos ligados ao pulsar da vida".
Ali estava aquele Coliseu para não o deixar mentir. Mesmo com mais cabelos brancos do que uma Festa do Avante!, mostrava-se como um organismo vivo e não como uma última floresta de árvores a morrer de pé, um organismo vivo capaz de declamar em coro, acompanhando o poeta já há muito falecido, embora presente em imagens de arquivo, esse final de "A Bandeira Comunista": "Por isso quando os burgueses/ nos quiserem destruir/ encontram os portugueses/que souberam resistir. /E a cada novo assalto/ cada escalada fascista/ subirá sempre mais alto/ a bandeira comunista."
E se o poeta (cujos 80 anos do nascimento se assinalam a 7 de dezembro e não os 90 anos como se afirmou no Coliseu) rimou fascista com comunista por necessidade do poema, lá estava Jerónimo para enviar bem alto a mensagem a todos aqueles que procuram colocar os dois no mesmo saco, "num vicioso processo de tentar unir e juntar o que é diferente e foi diferente", a todos os que "fingem ignorar que fascismo e comunismo são sistemas antagónicos", a todos os que com essa comparação "tentam a todo o custo demonstrar uma incompatibilidade entre a Revolução de Outubro e a democracia, entre o socialismo e a democracia": "Não! O socialismo não é incompatível com a democracia, nem teme a democracia".
Antes pelo contrário, garantiu Jerónimo, o socialismo, que é "o futuro da humanidade", precisa da democracia, "da participação consciente dos trabalhadores e do povo para se afirmar e desenvolver". Sem os trabalhadores e o povo "não há socialismo", tal como não existe "sem uma organização da sociedade com um funcionamento profundamente democrático".
Futuro, futuro, futuro, a Revolução de Outubro continua carregada de futuro, vai repetindo o PCP ("Socialismo –Exigência de actualidade e do futuro", assim sem acordo ortográfico, era o lema bem visível no fundo do palco; "Uma democracia avançada" e "Os Valores de Abril no futuro de Portugal", exibiam-se em duas tarjas enormes coladas abaixo dos camarotes) neste assinalar do centenário, num sublinhar de que se trata do maior acontecimento histórico do século XX, mas não se fica pela história: Vive!
Como o "capitalismo não é reformável, humanizável ou regulável", exclamou Jerónimo, arrancando fortes aplausos à plateia, aos camarotes, à galeria, "o mundo precisa do socialismo" e nem sequer se trata de constatação, vai além disso, é mais "uma necessidade que emerge com redobrada atualidade na solução dos problemas da humanidade".
A rima lá estava na frase de um discurso longo e, a certas alturas, de difícil leitura para o líder do PCP, que tossiu algumas vezes e chegou a engasgar-se. Havia parágrafos demasiado longos com respirações difíceis, outros que davam a entender um tom e afinal era diferente, passagens que dificultavam a dicção; valeu a experiência de quem, aos 70 anos, completados em abril, e quase 13 como secretário-geral, assinalados este mês, leva quilómetros e quilómetros de intervenções.
Tempo brutal e sinistro
"O balanço destes tempos é brutal e sinistro", leu o líder do PCP. Estamos perante a "crise do sistema de exploração" e a "cada vez mais profunda crise do processo de integração capitalista europeu". Assistimos à "tentativa de reativação do eixo franco-alemão e do aprofundamento dos três pilares da União Europeia – o federalismo, o militarismo e o neoliberalismo", à medida que se agrava "a ofensiva do grande capital contra os direitos laborais e sociais".
Aquilo que "o capitalismo globalizado" apregoa como "reino da abundância" apenas se traduz em "novas operações de concentração da riqueza", ao mesmo tempo que se explora, desemprega, precariza e se aumenta a injustiça para com os trabalhadores. E se assim acontece, chamemos os bois pelos nomes, como o PCP faz pela voz de Jerónimo, e acentuemos de forma simples o que o partido quer: "uma revolução socialista em Portugal".
Se o tão apregoado fim da história era falácia e o capitalismo tem de ser combatido, deixemo-nos de eufemismos e recuperemos palavras que digam o que querem dizer, porque o PCP continua a resistir às cosméticas impostas pelo capitalismo na sua esterilização da linguagem, nesse empenho em produzir e difundir "falsas dicotomias alternativas" que não são mais que "variantes secundárias do capitalismo", como "neoliberal versus progressista, cosmopolita versus nacionalista, ultramontano à Trump versus humanista".
Lá fora, na banca de livros das Edições Avante!, atendida por quem tinha sempre uma palavra a acrescentar sobre cada obra, cada autor, que vendia por 20 euros uma coleção de 35 cartazes da Revolução de Outubro ("fica a menos de um euro cada um") e uma polémica em 1972 entre "um jovem Avelãs Nunes" e um prémio Nobel da Economia, Jan Tinbergen, plasmada num pequeno volume que tem como título "Do Capitalismo e do Socialismo" ("é por causa dos prémios Nobel que a economia está como está", dizia alguém), estava uma obra de Jaime Serra, "12 Fugas das Prisões de Salazar". No prefácio, Jerónimo de Sousa escreve: "O raciocínio desses contadores de estórias é simples: não tendo havido fascismo (que designam por 'Estado Novo' ou por 'antigo regime') também não houve resistência."
Sintonia entre o Jerónimo do prefácio de Jaime Serra e o Jerónimo do discurso no Coliseu, de que é preciso resistir a esse limar do discurso feito pelo capitalismo que eufemiza o passado e o presente e serve de bandeja eufemismos para o futuro, acobertando-se neles para, "liberto das condicionantes que a existência do socialismo como sistema mundial impunha", "pôr cada vez mais em causa as liberdades e direitos políticos" e "empurrando o mundo para os perigosos caminhos da confrontação generalizada e da guerra".
Vontade de resistir não faltava no Coliseu cheio para comemorar o centenário da Revolução de Outubro, porque "os adversários do socialismo – o grande capital e o imperialismo – continuam a desenvolver uma singular e feroz campanha contra" os feitos alcançados pela "pátria dos 'sovietes', o primeiro país do mundo a pôr em prática ou a desenvolver como nenhum outro, direitos sociais fundamentais", entre eles "a jornada máxima de oito horas de trabalho, as férias pagas, a igualdade de direitos de homens e mulheres", bem como a "proteção da maternidade, o direito à habitação, a assistência médica gratuita, o sistema de segurança universal e gratuito, a educação gratuita". Toda uma enumeração a que o público não resistiu e interrompeu para fortes aplausos.
É como dizia Ary dos Santos (cuja antologia poética se vendia a 15 euros na banca das Edições Avante!) "isto vai meus amigos isto vai/ o que é preciso é ter sempre presente/ que o presente é um tempo que se vai/ e o futuro é o tempo resistente". Ou como explicou Cunhal e Jerónimo citou para gáudio dos presentes: "O nosso ideal corresponde de tal forma às necessidades e aspirações mais profundas do nosso povo (e dos outros povos), que um dia dele será o futuro".
URSS falhou, o comunismo segue válido
Se era do futuro que se falava, veio com muito lastro de passado, não fosse esta a comemoração do centenário de uma revolução que foi boa enquanto durou, mas a certa altura acabou por se estragar. O PCP admite que na altura da desagregação da União Soviética já pouco restava dos ideais de Outubro na pátria dos sovietes: "não é na Revolução de Outubro – a mais libertadora das revoluções – que se pode encontrar a origem do desaire que representou a destruição do socialismo na URSS, mas num 'modelo' de construção do socialismo que, como temos afirmado, acabou por se afastar e contrariar o ideal e o projeto comunistas em questões fundamentais".
Para Jerónimo de Sousa – e para o PCP "fracassou um modelo historicamente configurado de construção do socialismo, mas não o ideal e projeto comunista que continua válido, vivo e com futuro", daí que a Revolução de Outubro aí siga "como experiência concreta, como fonte de inspiração, com os seus valores e ideais afirmando que outro mundo é possível".
Dito isto, percebe-se melhor como se pode apontar ao futuro com tanta recuperação do passado como a que se fez nestas comemorações do Coliseu. Da coleção de canções revolucionárias (hinos e cantos de lutas várias simbolizando um "canto só: o da construção do socialismo no planeta dos humanos", como afirmou a apresentadora) ao vídeo documental que recuperava os grandes feitos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, assume-se a herança e descartam-se os devaneios que a fizeram perder.
Tal como na Festa do Avante!, também a música começou por ser erudita, com arranjos para quarteto (piano, violino, viola e sopros) de uma série de temas, "Partisans", "La Varsovienne", um dos arbeit lieder de Hans Eisler: "O Apelo do Komintern", a "Bandiera Rossa", o "Hino de Caxias", o "Redondo Vocábulo" e a "Canción de la Unidad Popular" (com a foto de Salvador Allende recebida com muitos aplausos). Uma coleção demasiado extensa de temas que ameaçavam ser para cantar e os arranjos travavam. A assistência tinha as canções na garganta e queria soltá-las, como se notou ao cantar esse "vá camarada mais um passo/ que já uma estrela se levanta/ cada fio de vontade são dois braços/ e cada braço uma alavanca", do "Hino de Caxias".
Foi mais simples depois, quando Catarina Moura, acompanhada por um sexteto, passou do russo ao espanhol, ao português e ao italiano, com canções que todos conheciam de cor e acompanharam no que puderam, sobretudo nesse "Guantanamera", um dos mais conhecidos temas cubanos, escrito por José Martí, o herói de Cuba, e musicado por Josito Fernandez. Em "Katyusha" houve até quem ensaiasse um pézinho de dança, mas sem acompanhamento depressa se sentou.
Depois veio o vídeo, autêntica máquina do tempo na revisitação de um mundo perdido, que incluiu até Misha, a mascote dos Jogos Olímpicos de Moscovo de 1980 (recebida com entusiasmo). Foi desfilando rostos, Yuri Gagarin (muito aplaudido), Amílcar Cabral, Agostinho Neto. Fidel Castro, Samora Machel, Ho Chi Minh, Salvador Allende, antes de falar do "modelo que se afastou e entrou mesmo em contradição com o ideal socialista e, por isso, caiu". Uma queda que, no entanto, não apaga as conquistas do povo soviético. "Sim, a Revolução de Outubro está aí como experiência concreta, como fonte de inspiração, com os seus valores e ideais afirmando que outro mundo é possível", leu Jerónimo de Sousa.
PS incluído nas vaias
Mesmo não sendo a comemoração do centenário da Revolução de Outubro momento propício para a discussão da conjuntura da política portuguesa, o líder do PCP não deixou fugir a ocasião para sublinhar as conquistas do governo atual influenciadas pelos comunistas, permitindo-se juntar o PS ao PSD e CDS para receberem as devidas vaias por uma "uma política que haveria de acabar por entregar os destinos do país à intervenção estrangeira e à concretização de um pacto ilegítimo entre aqueles que governaram o país em todos esses anos".
Esses socialistas, sociais-democratas e centristas transformaram "Portugal numa nação extraordinariamente exposta a alterações adversas do quadro internacional", com uma série de vulnerabilidades que "ficaram dramaticamente expostas nos trágicos incêndios florestais que assolaram o país este ano".
"Nas condições de Portugal, a sociedade socialista que o PCP aponta ao nosso povo, passa pela etapa que caracterizamos de democracia avançada", indissociável "da luta que hoje travamos pela concretização da rutura com a política de direita e pela materialização de uma política patriótica e de esquerda que dá corpo a essa construção".
Jerónimo e o PCP constatam que "o desaparecimento do socialismo como sistema mundial teve impactos profundamente negativos" em Portugal, permitindo a aplicação da "agenda do capitalismo dominante", a "destruição das conquistas de Abril", atacando "os direitos laborais e sociais dos trabalhadores". Daí que seja tão importante o papel do PCP, um quarto de século do fim da URSS, na sociedade portuguesa.
Depois da desagregação da União Soviética, afirmou Jerónimo, "alguns decretaram a morte do comunismo" e "o declínio irreversível do PCP e a sua inevitável liquidação", tomando "os seus desejos por realidade". Só que hoje, "o PCP continua de pé, a viver e a lutar, não apenas resistindo, mas fazendo acontecer, mantendo no horizonte sempre e sempre o objetivo do socialismo". E aqui a audiência desatou num forte aplauso e na repetição do "assim se vê a força do PC".
Tempo de elogiar o feitos comunistas na derrota do governo de direita em Portugal com o seu "contributo decisivo para derrotar e travar a brutal ofensiva" e pôr termo "a quatro ruinosos anos de prática de agravamento da política de exploração". Dois anos que foram "uma vantagem para a vida" de muitos e "motivo de apreensão e desorientação para os coveiros frustrados do PCP".
E sublinhando, como lição da Revolução de Outubro, que "a emancipação dos trabalhadores tem de que ser obra dos trabalhadores", Jerónimo de Sousa não esqueceu de recordar a grande manifestação da CGTP-IN do próximo dia 18.
"Liquidaram a Comuna de Paris, mas não a semente que a produziu e germinou em Outubro", completou o líder comunista, para quem o partido, "munido dos instrumentos teóricos do marxismo-leninismo", continuará a almejar "a construção da sociedade nova, livre da exploração do homem pelo homem".