Biógrafo de Trotsky, Lenine e Estaline, Robert Service dedicou a sua vida a estudar a história da Rússia comunista. O seu mais recente livro é sobre os últimos meses da vida de Nicolau II, “O Último dos Czares: Nicolau II e a Revolução Russa” (ed. Desassossego). Ao i, o autor descreve-o como “um tipo completamente desagradável” mas, ao mesmo tempo, “um pai maravilhoso”.
O que iria na cabeça de Nicolau II enquanto assinava a abdicação, em fevereiro de 1917?
Nicolau era um patriota. Não conseguia perceber porque havia tantas manifestações nas ruas na capital e subestimou o que estava a acontecer. Além disso, sofreu uma humilhação pessoal quando o seu conselheiro espiritual, Grigory Rasputine, foi assassinado no final de 1916. Nicolau não tinha paciência nenhuma para os altos círculos aristocráticos em Petrogrado, estava isolado e ficou cada vez mais desmoralizado. Quando os generais foram ter com ele e lhe disseram “não podemos salvar Petrogrado a menos que aceite deixar o poder”, o seu moral evaporou-se completamente. Curiosamente, recuperou-o numa semana, mas já era o moral de um homem aliviado por não estar no poder. Pensava que tinha feito o melhor que podia e que agora podia viver uma vida diferente.
Uma pessoa com outra visão poderia ter feito diferente? Poderia ter evitado uma revolução sangrenta?
Isso é uma das grandes questões. Não consigo ver como qualquer governante da Rússia poderia ter evitado o colapso da distribuição de alimentos, a desintegração da administração, os problemas de abastecimento militar da frente oriental, a inflação desenfreada, o que significava algo muito próximo do desastre para quem quer que estivesse à frente da Rússia. O mesmo se passou na Alemanha e na Áustria em 1918 – quando perderam, ambas colapsaram. Mas a Rússia caiu em algo muito pior, na guerra civil.
Ao assinar a abdicação, Nicolau sentiu o peso de ser o responsável pelo fim de uma dinastia com 300 anos?
Não há indícios de que se tenha arrependido de qualquer das suas ações. A mulher, sim, lamentava que ele tivesse abdicado, mas ele não. Ele achava que tinha feito o que podia naquelas circunstâncias. Falamos de um homem pouco ponderado, que não olhava para a sua carreira passada com um olhar crítico. Era um antissemita, achava que o povo russo era essencialmente bom, decente e simples, mas estranhas forças, em particular forças obscuras judaicas, tinham dado cabo de tudo. Nicolau II tinha uma visão idealizada dos seus compatriotas. Quando caiu do poder passou muito tempo a tentar aprender coisas sobre o povo russo, o que é algo extraordinário! Porque não o fez antes? Porque não leu “Guerra e Paz” antes de cair do poder? Porque não leu os contos sobre a classe de comerciantes das províncias russas? Ele só tentou perceber o que era a Rússia e o que era ser russo demasiado tarde.
Apesar dessas fraquezas, tinha outras qualidades?
Penso que Nicolau II era o que todo o ser humano é: uma mistura. Politicamente, era um fanático, um precursor do fascismo, um tipo completamente desagradável. Como pai, era uma figura maravilhosamente atenta, cuidadosa, adorava o filho. Aliás, o que o convenceu finalmente a abdicar do trono foi que, de outro modo, teria de viver afastado dos filhos. Nicolau odiava bailes, odiava as cerimónias na capital, gostava de cortar lenha, gostava de tirar a neve à pazada dos caminhos. Mas essa modéstia no quotidiano estava amarrada a um fanatismo ideológico.
Quando os Romanov foram transferidos do Palácio de Alexandre, nos arredores de Sampetersburgo, para Tobolsk, puderam levar todos os pertences que queriam?
Sim. Levaram as joias, muita da mobília, tapeçarias, o seu vinho. Mas não puderam bebê-lo porque, quando o vinho chegou a Tobolsk, os marinheiros e soldados pensaram: “Porque não haveremos nós de ter acesso a vinhos caros?” Nicolau não era um grande bebedor – era um russo muito invulgar, não gostava da pinga. Os oficiais militares, que não partilhavam da sua atitude em relação ao vodca, achavam isto misterioso. Nicolau II preferia o vinho da Madeira ao vodca – era uma escolha rara!
Quando foram de Tobolsk para Ekaterinburg também tiveram a mesma liberdade para levar o que quisessem?
Não. Não levaram tanta coisa com eles para Ekaterinburg [o seu último destino]. Em Ekaterinburg tinham menos livros, não podiam usar a biblioteca como tinham usado em Tobolsk, não lhes era permitido irem à missa, como tinha sido permitido em Tobolsk. Devemos ter em mente que, nesta época, muitos russos tinham de ir à procura do pão de cada dia. Em Ekaterinburg, a dieta era pior do que tinha sido em Tobolsk e em Tobolsk era pior do que tinha sido em Tsarkoe Selo, mas continuava a ser de alto nível para a maioria dos russos – embora eles [Romanov] não achassem… Na verdade, estou a ser um pouco injusto. Nicolau II não imaginava viver em circunstâncias luxuosas. Usava botas cambadas, não queria saber de roupas elegantes. Esse é outro aspeto dele pelo qual sinto uma certa empatia. Ele não era um czar normal, era um homem modesto.
Portanto, não teve grandes problemas quando se viu despojado do luxo a que estava habituado?
Sim. E limpava a neve do caminho, cortava a lenha para a lareira, alguns dos filhos ajudavam a cozinhar, tomavam conta das galinhas… Isto não era o comportamento habitual de um czar. Acho que Nicolau foi um homem mais feliz quando deixou o poder do que tinha sido durante os anos anteriores.
Quando soube ele que estava condenado?
Penso que o pior receio dele era que os bolcheviques o levassem sozinho para Moscovo, para longe da família, e a ameaçassem de maus-tratos caso ele não assinasse o tratado de Brest-Litovsk [tratado de paz assinado entre os bolcheviques e os alemães que pôs um ponto final na participação dos russos no conflito, mas à custa de enormes concessões territoriais aos germânicos, ao ponto de os termos do tratado serem considerados humilhantes]. Não há qualquer indício de que Nicolau suspeitasse de que a sua vida corria perigo até ser levado de Tobolsk para Ekaterinburg [na primavera de 1918] e haver no caminho sérias tentativas de dissidentes comunistas para o matarem. Mas os comunistas que o escoltavam protegeram–no, portanto, quando chegou a Ekaterinburg, pensou que estava a salvo. Nunca lhe ocorreu que alguém podia ser tão fanático ao ponto de o assassinar e à família. Pensou que, na pior das hipóteses, seria mantido em prisão domiciliária. E foi isso que aconteceu até que, de repente, uma noite, foram buscá-lo a ele e à família ao quarto de dormir e levaram-nos, juntamente com os criados e com os cães, e abateram-nos.
Havia teorias de que Anastasia poderia ter escapado e até vivido nos Estados Unidos. Porque descarta essa hipótese no seu livro?
A seguir à execução de Nicolau II e ao derrube dos comunistas na região dos Urais, as forças contrarrevolucionárias dos Brancos solicitaram um inquérito sobre o que tinha acontecido a Nicolau II e à sua família. E os resultados desse inquérito vieram parar-me às mãos, juntamente com muita correspondência sobre a autenticidade dos testemunhos. Juntos, provam sem margem para dúvida que ninguém escapou da cave de Ekaterinburg com vida. Para mim, essa é uma questão fechada. Só temos de pensar nisto: num espaço fechado, militares treinados – ou mesmo que fossem novatos… – iam falhar a pontaria a uma distância de poucos metros? Iam enganar-se a contar os corpos que atiraram para uma pira funerária? É impossível acreditar nisso.