Catherine Merridale esteve pela primeira vez na Rússia em 1982. Desde então tem publicado uma série de livros sobre a história daquele país. Em 2013 fez uma monografia do Kremlin, o centro do poder. Em 2015 seguiu no encalço de Lenine, fazendo a mesma viagem de comboio que o líder bolchevique fez em 1917, entre Zurique, onde estava exilado, e Sampetersburgo, onde a revolução acabara de estalar. Dessa viagem e de uma investigação cuidadosa resultou o livro “Lenine no Comboio” (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores).
Quem eram as pessoas que viajaram com Lenine no comboio?
Duas das acompanhantes eram a sua mulher, Nadezhda Krupskaia, e a sua ex-amante, Inessa Armand. Também havia um conjunto de bolcheviques muito próximos, como Grigory Zinoviev. E um sortido de outras pessoas que eram bolcheviques ou. pelo menos. socialistas. O grupo era formado por russos e alemães e, para preservar o espaço de cada grupo, desenharam com giz uma linha no chão da carruagem. Os alemães iam de um lado dessa linha e os russos do outro, e o único que podia atravessar essa linha era um intermediário suíço chamado Fritz Platten, que seria supostamente neutral e, como tal, poderia falar tanto com os alemães como com os russos.
Muitas destas pessoas acabaram por ter um final terrível…
Estaline não mostrou qualquer compaixão por aqueles que tinham sido próximos de Lenine. Houve quem morresse durante a Guerra Civil, mas muitos foram presos nas purgas, incluindo Karl Radek. Raskolnikov foi morto em França, Zinoviev foi executado depois de um julgamento-espetáculo e mesmo um homem chamado Fürstenberg, que foi quem arranjou financiamento para os bolcheviques junto dos alemães e tratou dos bilhetes do grupo na Suécia, também foi preso e morto. A maioria deles tiveram finais trágicos. Penso que foi sobretudo porque Estaline tinha de reescrever a História depois da morte de Lenine. Queria ser ele a controlar o legado de Lenine e não deixar que outros mais próximos o fizessem. Isso está bem representado na capa do livro, uma pintura que mostra Lenine a descer do comboio na Estação da Finlândia [em Sampetersburgo]. Atrás dele aparece Estaline – aliás, até um pouco acima -, mas Estaline nunca esteve lá. Essa pintura foi feita em 1937, no 20.o aniversário da chegada, e o pintor tentou fazer de Estaline o mais próximo colaborador de Lenine, mas não era. Trata-se de uma ficção completa.
Porque achou importante reconstituir com exatidão o percurso de Lenine desde Zurique até Sampetersburgo?
Porque muitas pessoas se enganaram em relação a ele. Era apenas uma questão de ser rigoroso para que, cem anos depois, houvesse um registo correto. Outra razão foi tentar recuar a um tempo em que Lenine estava bem vivo, ávido de trazer as mudanças que ambicionava, e ainda não estava a controlar as coisas, estava ainda a debater-se sobre como conseguir isso. Para trazer Lenine de volta à vida, para lhe devolver a sua humanidade, eu tinha de recuar ao período antes da revolução, antes de ele tomar o poder. Fui estudar para Moscovo em 1982. E a minha memória é de Lenine estar bem morto no passado – fosse um cadáver no mausoléu, uma estátua na praça, um retrato na parede, e o Lenine verdadeiro estava a desaparecer.
Alguma vez teve curiosidade de ir ver a múmia de Lenine no mausoléu da Praça Vermelha?
Várias vezes. “Curiosidade” é uma boa palavra porque, obviamente, não sinto qualquer reverência… Também não me faz impressão, porque sei que aquela pessoa já está morta há muito tempo. Ficamos a pensar porque será que ele ainda está ali – é uma visão realmente extraordinária, a cabeça ruiva, careca, evidentemente restaurada muitas vezes.
Como decorreu a viagem? Houve sobressaltos?
Na Suíça, os comboios eram muito lentos. A paisagem era muito bonita, claro, mas avançava-se muito lentamente. Na Alemanha, os comboios estavam mais bem organizados, mas o país só recentemente tinha sido unificado, por isso ainda estavam organizados por províncias. Cada província tinha a sua própria locomotiva e, cada vez que mudavam de província, tinham de mudar de locomotiva. Acho que esta parte da viagem na Alemanha, em particular, deve ter sido particularmente desconfortável para Lenine e o seu grupo porque estavam numa carruagem com 30 pessoas e uma só casa de banho. Não podiam sair, deixar o comboio, sob risco de serem presos. E claro que toda a gente quer esticar as pernas a certa altura. Estar fechado nesta carruagem relativamente pequena, dividida em compartimentos, e saberem que a qualquer momento podiam ser presos – ou mesmo abatidos – deve ter sido muito desagradável.
Como era a atmosfera na estação à chegada de Lenine?
A Estação da Finlândia era a estação pela qual regressavam os exilados a Sampetersburgo. Havia um ambiente festivo, havia bandeiras, fitas vermelhas e pretas, flores, uma banda a tocar. Os bolcheviques estavam ansiosos por fazer do regresso do seu líder um grande espetáculo. Apesar de ser Páscoa – o que causava alguns constrangimentos, porque era feriado nacional -, conseguiram arranjar um carro blindado e até um holofote que penetrava através da escuridão, movia-se no céu, criando um efeito cénico impressionante. Era muito tarde, passava das 11 da noite de uma segunda-feira, o dia seguinte era dia de trabalho. Mesmo assim havia muito barulho, muito entusiasmo. Muitas pessoas que lá estavam nem sabiam do que estavam à espera mas, como sabemos, uma grande multidão atrai mais pessoas. O comboio estava atrasado, por isso as pessoas olhavam para os relógios ou para o grande relógio da estação. Finalmente, o comboio chegou e houve um grande alvoroço e música, Lenine desceu ao som da “Marselhesa”, o que não lhe agradou nada. Havia duas pessoas do soviete de Petrogrado à espera dele. Ele subiu para o carro blindado e fez um discurso que mudou a História.
Algumas pessoas veem Lenine como um político mais idealista e Estaline como um tirano implacável. Também vê as coisas assim?
Lenine era certamente idealista, mas também era implacável, cortante. A diferença, penso eu, é que ele não tinha prazer na morte ou no sofrimento dos outros. Não ia vê-los serem executados. Ele não era cruel mas, em prol da revolução, fazia o que achava que tinha de ser feito. Com uma maldade e agressividade verbal rápida, falava como uma metralhadora, por vezes falava em eliminar pessoas impiedosamente ou até do uso de diferentes métodos de tortura. Mas as suas motivações eram sempre de ordem política. Lenine é uma figura estranha – pelo menos para mim. Não tem qualquer carisma para as nossas gerações. Não se interessava particularmente por dinheiro, não se interessava por sexo, palácios ou carros desportivos, nem pela crueldade pelo prazer da crueldade. Também não era um místico, não era diabólico, nem provocador, nem bonito, Lenine não é nada disso. Ele tinha um interesse genuíno numa ideia, a ideia do comunismo, e hoje é muito raro encontrar alguém assim.