Obscena é uma certa prostituição moral


Há muito que é evidente que o PCP e o BE se venderam pelo tal proverbial prato de lentilhas e que a sua actuação política no quadro da geringonça é uma caricatura daquilo que eles foram antes do acesso ao poder


No essencial, esta semana esteve marcada, ainda, pelas reacções políticas desencadeadas pelos incêndios da semana passada.

Houve tempo e espaço para ouvir e reflectir sobre a importante declaração ao país do Presidente da República e admirar a diferença fundamental de estilo, conteúdo, sentido político e de Estado, e da profunda humanidade que a mesma trouxe em frontal choque com o discurso técnico, frio e impessoal (e sempre impenitente) do primeiro-ministro, em qualquer das duas dolorosas intervenções com que castigou o país nas suas horas mais difíceis.

Nesta data, já muita gente, e geralmente em sentido confluente, discorreu sobre isto mesmo, e bastará ter presentes as declarações do primeiro-ministro no parlamento para, finalmente, lhe perceber algum ressentimento pelo sucedido e enfim termos a assunção (verdadeira, mas estranhamente solitária) da sua culpa nesta tragédia.

Em grande parte ou, se calhar, em exclusivo, devemos a Marcelo Rebelo de Sousa este recentrar da posição do PM e esta afirmação da ética política e de humanização da estrutura que – e parece que muita gente o esqueceu –, mais do que um modelo de mera distribuição de rendas às clientelas e de projectos políticos pessoais, deveria ser uma entidade focada nas atribuições tendentes à realização do bem comum na sua dimensão mais ampla, onde a segurança será uma das principais, e o aumento das retribuições aos futuros eleitores, nem tanto.

Para uma parte dos portugueses, assim, o falhanço evidente desta função do Estado (e, porventura, mais ainda a repetição em número e extensão de uma tragédia de pessoas e bens semelhante, só quatro meses depois da outra) legitima o exercício do único mecanismo constitucional e político desenhado para censurar uma actuação desconforme, insuficiente ou ausente de qualquer governo, e que é a moção de censura.

É pelo menos curioso, neste quadro, que a utilização dos mecanismos constitucionais e políticos, num caso destes, seja apelidada de “obscena” ou de “inaceitável aproveitamento político”.

É que a verdade é que, quando tudo falha e mais de cem portugueses morrem tragicamente num quadro em que o Estado, que o governo tutela, falhou aos portugueses, é apenas natural, às pessoas de bem, que manifestem a sua censura política, e o mecanismo político certo é a moção de censura.

Há muito que é evidente que o PCP e o BE se venderam pelo tal proverbial prato de lentilhas, e que a sua actuação política no quadro da geringonça é uma caricatura daquilo que eles foram antes do acesso ao poder, sobrando-lhes só a adjectivação grave do antigamente.

Note-se que se uma coisa houve que a moção de censura nos trouxe, pesem as atabalhoadas tentativas de negar o inegável, é que os partidos da esquerda radical ratificaram a actuação do governo e assumiram a sua responsabilidade política pela actuação com que dizem não concordar mas que, no fim, sempre sufragaram (mais ou menos a desgosto) ao não censurarem os seus autores.

Aliás, seria muito curioso saber-se, nas inúmeras reuniões antes de dia 15/10 em que os partidos que apoiam o governo negociaram os aumentos de rendimentos das suas clientelas pagos pelos impostos de todos, quantas vezes, nessas dezenas de vezes, o interior rural e a prevenção dos incêndios foi debatida. Arriscaria que nenhuma.

E aqui torna-se indispensável citar uma publicação da esquerda.net que transcreve o discurso de uma deputada do BE num Verão algarvio, em 2010, onde se pode ler: “(…) estes incêndios, ao contrário do que nos querem fazer crer, também têm a ver com as políticas de constantes cortes nos serviços do Estado. Os vigilantes da natureza não têm condições para efectuar o seu trabalho, são muito poucos e não têm meios. De facto, chegou até a acontecer que, durante um ano, estes vigilantes não puderam sair para o terreno pois não havia sequer orçamento para pagar o combustível para as viaturas.”

Neste cenário, o que será verdadeiramente obsceno é o BE, que fala em obscenidade mas tem estas ideias desde, pelo menos, 2010, mas votou os orçamentos dos anos de 2016 e 2017, aprovados pela geringonça, que baixaram as verbas de combate a incêndios, em alguns casos 30 M€, e 9% em média, relativamente a orçamentos dos anos anteriores, incluindo os dos anos da troika.

Não o é menos que tenha procedido à entronização de um governo de apoio parlamentar em que BE e PCP tiveram actuação directa e estão na origem da escolha da MAI, que (não) acompanhou estes incêndios, e do nepotismo que trocou 70% da estrutura dirigente da ANPC para colocar amigos inexperientes, e agora finja que nada tem que ver com isso.

Obsceno é que se venha ensaiar, depois de deposto o governo eleito, que esta responsabilidade, ao fim de dois anos do tal apoio, não só não é também sua, ou do governo que apoiam, mas de quem já não governa. É o grau zero da responsabilização e o máximo da falta de vergonha.

Como também é obsceno dizer que tudo falhou, apontá-lo e reconhecê-lo, mas votar como se tudo tivesse corrido bem, como obsceno é não assumir a quota-parte de responsabilidade na produção do desastre e deixar sós os que só mandam por causa do seu apoio, quando governam condicionados pelas imposições financeiras de um orçamento a três mãos.

Ou seja, verdadeiramente obscena – não é, nem pode ser, o exercício dos instrumentos constitucionais como a moção de censura – é esta prostituição moral.

 

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990