Filhas da Índia


Permita-me que lhe apresente Saroj. A menina que teve sorte de chegar aos onze anos. Não é a primeira menina da família, mas a única que sobreviveu, numa região onde as mulheres vivem a demência de matar as filhas.


Olhar para o país-continente Índia pressupõe um descompasso entre as interpretações sobre o que é a realidade. A maior fábula de todas é o real. Há a Índia da “Vogue”, da novela “Caminho das Índias”, do 00/, do The Darjeeling Experience, e a Índia que não vem em nenhum mapa.

No país do Kamasutra e dos Yogis, do Taj Mahal – conhecem elegia ao amor mais bela? – dos sonhos açucarados-coloridos-kitsch de Bollywood, no país para o qual peregrinam europeus em busca de um guru que os ilumine e lhes dê a experiência que faltava nas suas vidas monótonas e confortáveis, no país de Mahatma Gandi, onde as vacas são sagradas, as mulheres são animais em regime de caça livre.

Vá ao Google Maps e procure o Rajastão, gloriosamente branco, azul, vermelho, como os seus lagos, palácios esplendorosos e o deserto. Agora faça zoom-in. Permita-me que lhe apresente Saroj. A menina que teve sorte. Sorte de chegar aos onze anos de idade. Não é a primeira menina da família, mas a única que sobreviveu, numa região onde as mulheres vivem a demência de matar as filhas. A irmã mais velha de Saroj foi asfixiada pela mãe com a areia vermelha do deserto. A bebé que se seguiu foi enterrada viva após ter soltado o primeiro grito. “Aqui é assim”, diz a mãe de Saroj e chora. Só quando nasceu a terceira menina teve a coragem de se opor à sogra e salvar a filha.

As meninas no Rajastão não vão à escola, nunca ganharão dinheiro. O casamento de uma rapariga pode arruinar a família. As meninas são um fardo, os meninos uma bênção. “Se as mulheres fossem consideradas iguais aos homens não quereriam mais trabalhar em casa”, dizem os anciãos. 50 mil fetos do sexo feminino são abortados mensalmente. “O meu bebé era menina, paguei 1200 rupias [17 euros] e livrei-me dela”. Soma-se um número desconhecido de bebés do sexo feminino mortos ou abandonados à nascença. Um gendricídio.

Mudemos de cenário. Nova Deli. Onze milhões de habitantes. Sunita regressou à casa dos pais. Não é bem-vinda. Apenas suportada. Rompeu o casamento arranjado porque o marido a espancava todos dias à frente do filho. “As mulheres hoje já não aguentam nada”, queixa-se a mãe de Sunita. Na Índia 47 por cento das mulheres são forçadas a casar antes dos 18 anos.

A cada 20 minutos uma mulher é violada na Índia. As Nações Unidas classificam o país como o mais perigoso do mundo para ser mulher, à frente do Afeganistão ou da Arábia Saudita. Há um ano, a morte da estudante de 23 anos, Jyoti Singh Pandey, na sequência de uma violação colectiva num autocarro, sacudiu as consciências. Quatro dos violadores foram condenados à pena de morte. Uma excepção.

Nos últimos anos 3500 homens foram condenados a penas de prisão por violação e mais de 11 mil foram ilibados da acusação. Para a sociedade indiana a culpada pela violação é sempre a mulher. O caso Jyoti é sintoma de uma guerra que a Índia conduz contra as suas filhas. Uma guerra que começa nos minutos que se seguem ao parto.

Em Calcutá, uma jovem mulher sonha vencer as fronteiras da Índia para pedir socorro ao mundo. Luta sozinha contra as barreiras internas petrificadas por séculos de opressão masculina. Suzette Jordan foi violada por cinco homens. Recusou o silêncio e a culpa. Suzette é a primeira mulher vítima de violação na Índia a mostrar o rosto. O preço da coragem é muito alto e ela traz nos braços as marcas das várias tentativas de suicídio.

Vrindavan, cidade das viúvas. Mulheres de branco, idosas e jovens adolescentes, acocoram-se no pó e esperam por moedas. Chayya tem 74 anos. Foi expulsa de casa pela filha após a morte do pai, algo comum na Índia onde as viúvas estão presas numa espiral de preconceito e superstição. Impossibilitadas pela tradição de se voltarem a casar estão condenadas a viver à margem da vida, na miséria mais abjecta. Mesmo que o casamento seja um inferno para estas mulheres, “sem marido não temos mais nada”, diz Chayya. No rio Yahamuna incendeia-se uma pira funerária, uma despedida solitária. “Ela não tinha ninguém”. Apenas um filho.

Nota final: “As filhas perdidas da Índia” é um documentário extraordinário do Canal Arte. São 53 minutos que colocam estas mulheres no mapa e na geografia dos afectos. O mundo divide-se entre os que estão no mapa e os ausentes deste. A maior fonte de violência? A invisibilidade.

Escreve à segunda-feira