Incêndios. Governantes podem ser acusados criminalmente

Incêndios. Governantes podem ser acusados criminalmente


A responsabilidade civil é certa. Mas há quem defenda que até pode haver responsabilidade criminal de governantes. Como Leonor Beleza teve de responder no caso dos hemofílicos.


Se ninguém tem dúvidas de que o Estado tem responsabilidade civil e a consequente obrigação de indemnizar as vítimas (ou seus familiares) da tragédia de Pedrógrão Grande, em julho, e dos dramáticos incêndios de domingo e segunda-feira passados, já quanto à eventual responsabilidade criminal dos representantes do Estado – governantes incluídos -, usando expressão da praxe do Direito, a ‘doutrina divide-se’.

Questionada pelo SOL sobre a eventualidade de proceder criminalmente contra membros do Governo, por ação e omissão em Pedrógão em julho ou no centro e norte do país neste domingo e na segunda-feira, a Procuradoria Geral da República escusou-se a responder ou fazer qualquer comentário.

Mas o SOL ouviu vários especialistas em Direito Penal, de professores catedráticos a advogados de ‘barra’, que optaram por não se identificarem, invocando não terem conhecimento direto dos casos.

Em teoria, responderam, há a possibilidade – que a maioria, porém, considera remota – de haver mesmo processos crime contra membros do Governo e de responsáveis das várias entidades envolvidas (Proteção Civil, autarquias, empresas concessionárias).

E avançam que se em relação a Pedrógão o fator imprevisibilidade das mortes verificadas exclui em absoluto a hipótese de ter havido ‘dolo eventual’ de quem quer que seja, já no caso das vítimas dos últimos incêndios fatais, e face aos alertas emitidos, poder-se-á configurar a hipótese de crime cometido com dolo eventual, aumentando a possibilidade de existir procedimento criminal por homicídios involuntários.

Entre os juristas consultados, vários recordam o caso dos hemofílicos, em que a ministra da Saúde à época (Governo de Cavaco Silva), Leonor Beleza, teve de enfrentar inquérito crime.

Recorde-se que há 109 mortes causadas pelos incêndios que deflagraram em Pedrogão e pelas centenas de incêndios que deflagraram no domingo, o pior dia de fogos do ano. A este número juntam-se ainda várias dezenas de feridos. «Reconhece-se que as entidades políticas e administrativas falharam gravemente, nomeadamente em Pedrogão, como consta nos relatórios já divulgados e, como tal, podem ser responsabilizados por homicídio involuntário», revela um reputado jurista. 

Um outro advogado que também não quis ser identificado garantiu ao SOL que avançar com uma ação criminal contra ações individuais é possível. «Há vários crimes que podem ser cometidos por negligência, como por homicídio ou integridade física. Mas para haver uma ação criminal tem de haver um conjunto de factos concretos que conduzam a determinado resultado. É o caso, por exemplo, de crime por dano, ofensa à integridade física ou homicídio por negligência».

Os advogados lembram ainda que o caso pode ganhar novos contornos face ao pouco período de tempo que passou entre o incêndio de Pedrogão e os vários incêndios ocorridos no passado domingo. E a opinião é unânime: «As mortes que resultaram deste último incêndio não foram inéditas. Quatro meses anos tínhamos assistido a uma situação semelhante», salientaram. 

E, a agravar, está ainda o facto de não terem sido alteradas as  fases de combate aos incêndios – menos 40% – o que veio dificultar o combate às chamas no domingo passado, apesar dos alertas sobre o elevado risco de incêndio para esse fim de semana. 

Recorde-se que ao longo do ano existem distintas fases de combate aos incêndios. De janeiro até meio de maio vigora a fase Alpha. Finda esta fase, inicia-se uma outra: a Bravo, que se estende até ao dia 30 de junho. De 1 de julho a 30 de setembro, os meses fortes do verão (e calor), o combate aos fogos é regido pela fase Charlie, aquela em que os meios estão na máxima força. O mês de outubro tem uma fase própria: a Delta, que termina no fim do mês para dar início à fase mais pacífica – a Echo, de 1 de novembro até 31 de dezembro.

A Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, liderada por Nádia Piazza, jurista que perdeu o filho de cinco anos no fogo, já admitiu, em última instancia, mover uma ação contra o Estado.

Os relatórios dos peritos que analisaram a tragédia de Pedrógão Grande apontaram falhas estratégicas durante o fogo e meios reduzidos no ataque inicial às chamas. Uma das falhas também apontadas e que pode ser imputada ao Governo é o facto de não ter sido antecipada a fase Charlie em junho, quando havia avisos meteorológicos de condições propicias a que tal acontecesse. Pode ter havido falhas que se repetiram nos últimos dias e tal poderá contribuir para um agravamento das responsabilidades do Estado nas mortes dos últimos dias. Designadamente a desafetação de meios quando as previsões apontavam para condições particularmente propícias a incêndios.

* com  Marta F. Reis