Gracinda, secretária de Francisco George nos últimos sete anos, chega ao auditório da Universidade Nova de Lisboa já emocionada. É o dia da despedida e, para quem trabalhou de perto com o diretor-geral da Saúde, é o final de um ciclo com a sua dose de adrenalina e sentido de dever cumprido. "Deve ter aí uns 300 dias de férias por gozar", conta a funcionária, a quem Francisco George ligava antes de chegar pontualmente às 9h00 ou sempre que regressava de uma deslocação. "Peça que subam" foi das frases que Gracinda mais ouviu nos últimos anos. Era o toque para os peritos se irem preparando para reunir no gabinete no 8.º piso no edifício da DGS na Alameda. "Geralmente deixava passar uns dez minutos. Sabia que ele não estava já ali". O ritmo "frenético" e a impaciência para contratempos são das imagens de marca de Francisco George, que hoje às 24h termina as funções à frente da DGS. Faz amanhã 70 anos, a idade limite para trabalhar no Estado.
No auditório lotado para a última intervenção, estiveram colaboradores, os ministros da Saúde das últimas décadas, colegas da Faculdade de Medicina, o jovem médico que lhes ensinou os truques para debelarem o curso – o psiquiatra Daniel Sampaio – ou um dos seus amigos mais antigos, Eduardo Barroso, colega no externato Lar da Criança, numa altura em que partilhavam os recreios com Marcelo Rebelo de Sousa. Marcelo não esteve, por estar de visita aos concelhos afetados pelo fogo, mas deixou uma mensagem que anunciou a condecoração com a Grã-Cruz da Ordem de Mérito.
Na cerimónia, que começou com atraso e entraves técnicos – "era o tipo de situação em que nos dizia logo que não podia ser assim", sorriu ao nosso lado uma antiga funcionária – a primeira intervenção caberia a Ferro Rodrigues, amigo das lutas que antecederam a causa da saúde pública. "Tinha 13 anos quando ouvi falar pela primeira vez dos manos George. Representavam o grupo dos democratas contra a oposição", contou o presidente da AR.
João George, cinco minutos mais velho, também estava, junto com o resto da família. Em comum, a voz, os gestos e a pontualidade herdada do pai, Carlos H. George, durante anos diretor do Hospital de Sta. Marta. "Os porteiros acertavam o relógio pelo nosso pai", conta João. Francisco diria que, até aos 15 anos, só a mãe os distinguia. "Quando olhava ao espelho tinha de mexer a mão para saber quem era eu". A irmã mais nova cinco anos, Rita, aproximar-se-ia no fim a pedir que reponhamos a verdade: ela também nunca confundiu os gémeos.
"Estiveste no lado certo da história, na barricada da democracia", lembrou Ferro, recordando um dia em que andavam a arrancar cartazes da Ação Nacional Popular e foram salvos dos homens armados da Legião Portuguesa por Nicolau Breyner. George viria a "orientar o talento" para a saúde, somando 44 anos de serviço público.
Francisco George com o motorista Rodolfo Gigante, há 15 anos
Comunicador, construtor do SNS ou a obsessão pelo trabalho e servir o outro – que o ajudou a superar a morte da mulher e de uma filha num acidente – foram alguns dos elogios. Na sala, haveria mais histórias. Rodolfo Gigante, motorista do diretor-geral nos últimos 16 anos, diz que nada bate o episódio num hotel do Porto. Ficou com a suíte e o «chefe» com o quarto que lhe estava reservado. "Quando ligaram a perguntar se tinha gostado do hotel de cinco estrelas ele disse que não era grande coisa. Eu nem tive tempo para ver todas as divisões, até tinha ginásio", ri.
Quando o stresse era muito, o motorista chegava a atender o telefone aos jornalistas – que George não se esqueceu de elogiar como pilar da saúde pública – e tornou-se parte da família, como atesta a companhia dos netos do diretor cessante na cerimónia. Esperam que o avô, que quer ser presidente da Cruz Vermelha, tenha mais tempo. Elogiam-lhe as prendas e os incentivos a comerem bem. "Na festa de anos da minha mãe levou uma pizza de gomas, mas sem açúcar", conta Maria João, de nove anos.
No último ato, George falou dos pequenos mas excecionais meios da DGS. E deixou um pedido à AR para que a Constituição seja revista e permita pôr doentes de quarentena. "Hoje se alguém com ébola quisesse sair e apanhar o metro podia". Falou dos avanços na digitalização das ferramentas, que despertam interesse lá fora, e das ameaças para o futuro: doenças infecciosas, resistência a antibióticos e o peso das doenças crónicas causadas pelo estilo de vida. A cerimónia terminou com o sussurrar da associação Música nos Hospitais, com ‘Barco Negro’, de Amália. «Dizem as velhas da praia, que não voltas: São loucas! São loucas!».