Desgraçadamente sós


Quem ouviu o discurso seráfico e cínico de Costa enquanto o país arde só pode temero pior pelas palavras proféticas que prometem sequelas disto para os próximos anos


Na madrugada de 15 de Outubro, por volta das 0h45m da manhã, no coração de uma aldeia do distrito de Viseu, nas faldas do Caramulo, o fogo chegou até ao largo da igreja.

Batido pelo vento, veio de longe, rápido e voraz, queimando a terra a toda a velocidade com que passou e instalou-se nas árvores centenárias de um jardim da aldeia, cuspindo as suas fagulhas sobre a casa sobranceira e majestosa em frente, casa tão antiga que se confunde com a freguesia em cujo coração (ainda) vive.

Nos ramos das árvores monumentais, o fogo castiga, impiedoso, as suas centenas de anos de memórias da terra, enquanto se agiganta e aviva a sua ameaça sobre a casa.

As árvores e a casa debatem–se num combate desigual, resistem só com a ajuda dos donos, toda a noite e até hoje, sem um bombeiro, um polícia ou GNR, alguém da Protecção Civil, nada a não ser a solidão absoluta da luta dos inconformados.

Debalde se procura ajuda. No epicentro do fogo, as comunicações estão em baixo, os bombeiros incontactáveis, a Protecção Civil mantém-se silenciosa e inacessível no alto de uma qualquer torre de marfim, e até o 112 colabora com a desgraça, a remeter as chamadas destinadas à área de Viseu para o centro operacional de Coimbra.

O caos operacional, como sentem as populações em chamas, é flagrante e generalizado, e o desnorte é confrangedor, de tal maneira que os bombeiros comunicam números de telefone (inacessíveis também) através do Facebook, mas o silêncio mantém-se a norma a noite toda.

Entretanto, enquanto Costa na TV repete estatísticas e inutilidades em frente às câmaras e explica o inexplicável com frases do género “isto ainda vai piorar muito antes de melhorar”, e que ele fez tudo bem, os outros é que não o ouviram, o país segue ardendo.

A esta hora conheciam-se apenas cinco mortes… Mas já era muito claro que a tragédia não ia ser pouca!

Sobranceiramente, o nosso PM fala em infantilidades quando se buscam responsáveis e faz comentários ao percurso dos MAI’s precedentes, como se não tivesse sido um deles, parecendo esquecer que foi esta MAI quem está ainda agora a começar a dar explicações sobre um relatório referente a mais do mesmo, acontecido há poucos meses… na prova mais evidente de que não aprenderam nada com o sacrifício inglório dos caídos de Pedrógão e Góis.

E pior, que nada fizeram neste ínterim.

Quem ouviu o discurso seráfico e cínico de Costa enquanto o país arde só pode temer o pior pelas palavras proféticas que prometem sequelas disto para os próximos anos.

E, ao mesmo tempo que fala e se enaltece, as notícias das TV’s dão conta de cidades sitiadas pelo fogo como Santa Comba Dão, Tondela, Vouzela, ali mais perto, ou Monção, ou Praia da Vieira de Leiria, mais longe.

Mas no coração da tal aldeia, ao lado da igreja, o fogo continua a arder e os moradores estão sós, entregues – como este governo os vem habituando – ao seu destino e à anarquia da falta de comando e meios, mas não se resignam e lutam, apenas movidos e guardados pelo seu enorme coração, coragem e vontade indómitas.

Sozinhos, consternados com este abandono e desnorte, dentro da nossa casa, os dois resistem, lutam, regam, molham e apagam todos os fogos que ainda conseguiram atacar a tal enorme casa que protegeram sozinhos até à acalmia, e só de manhã abrandam a olhar a desolação que se estende campo fora até onde se vê.

Entretanto, enquanto a ministra se queixa das férias que não teve, portugueses muito resilientes e muito mais que ela, mas sem a mesma sorte, acumulam-se mortos, vítimas dos fogos, ou extenuados e exaustos pela noite em claro a lutar contra a inevitabilidade que não aceitam.

Perante os números e a tragédia, políticos impenitentes pedem às vítimas, no conforto das instalações da APC em Alfragide e outros sítios onde nada arde, mais resiliência ao abandono público e ao desnorte, e uma resignação à confessa e prometida impossibilidade ou sequer vontade de fazer melhor ou diferente para os anos vindoiros.

Mas aos portugueses do país rural resta-lhes serem resilientes aos fogos e, duplamente, a estes governantes. Isto vale para os dois de que falo e todos os outros populares e bombeiros que não querem aceitar, conformados e sem luta, a inevitabilidade da derrota a que já os votaram.

Meus queridos “manos”, na hora mais difícil, obrigado pela dedicação, valentia e coragem e por ousarem não desistir quando vos deixaram sozinhos, nem fraquejar (como os outros) quando era o mais fácil, vocês são os meus heróis.

Com sorte e com vocês, e se Deus quiser, ainda havemos de sobreviver a esta gente.

P.S. Artigo escrito na segunda-feira, depois de uma madrugada de sobressalto, antes da comunicação do primeiro-ministro ao país e de o número de vítimas contadas ser já de 36 mortos.

Advogado na norma8advogados