e. e. cummings e Polanski dialogam sobre processo penal


O cliché da verdade material é um mau cliché e é perigoso, porque é pura ilusão julgar que se busca e se encontra no processo qualquer verdade para além da processual, ou seja, a reconstituição narrativa de um pedaço de passado feita segundo um conjunto de princípios, garantias e regras


Ficou célebre uma frase que é dita no filme de Polanski “Chinatown”, pela personagem interpretada por John Huston, e que reza assim: “Políticos, prédios feios e prostitutas tornam-se respeitáveis se durarem tempo suficiente.” Deliciosa frase. Mas faltou acrescentar à trindade venerável, pelo menos, os clichés. E há um muito usado, glosado e acarinhado em processo penal que tem já tanto tempo e tal uso que se tornou respeitabilíssimo, ao ponto de já não se lembrarem bem do que ele significa ou não, e de ser usado a torto e a direito, muitas vezes erradamente.

Refiro-me à verdade material, àquela frase estafada, e que rola gostosa em tantas bocas, que nos diz que no processo penal se procura a verdade material, e isso para muitos parece querer dizer que se busca (e que é possível encontrar) a “verdade-verdadeira”, ontológica, e até que isso é o valor supremo desse tipo de processo, a tal ponto que a ele se deve subordinar tudo o mais. Até já ouvi e li vozes várias, entre o entediado e o irritado, barafustando contra os entraves que as regras processuais colocam à descoberta da verdade. Que chatice, o processo; vai uma pessoa toda lampeira em busca da luz e, pelo caminho, o processo – com seus princípios, garantias e regras – a atrapalhar.

Ora, o cliché da verdade material é um mau cliché e é perigoso. É mau porque é pura ilusão julgar que se busca e se encontra no processo qualquer verdade para além da processual, ou seja, a reconstituição narrativa de um pedaço de passado feita segundo um conjunto de princípios, garantias e regras. Se na ciência histórica não há ontologia nem revelações, no processo penal ainda há menos, porque ambos têm em comum a reconstituição e a retrospetiva em igual medida, mas o aperto das regras é bem maior no processo, e assim tem de ser, porque o processo trata de vivos e porque tira consequências pesadas da reconstituição a que procede.

A expressão “verdade material”, histórica e legitimamente, apenas quer (e pode) significar duas coisas: uma, que não há aqui uma distribuição do ónus da prova, ao contrário do processo civil; outra, que pode o juiz ter possibilidades de investigação superiores às do processo civil. Tudo o mais é cliché e é abuso. E perigoso, porque se pode instalar a ideia de que vale tudo ou, pelo menos, muito para chegar à tal ilusão de verdade, afastando os empecilhos do processo.

Em processo penal não pode valer o dito poético de e. e. cummings: quem busca a verdade não segue nenhum caminho, todos os caminhos levam onde está a verdade. Isso não é nada verdade. No processo, nem sequer os caminhos se bifurcam, no sentido borgiano. Só há um caminho legítimo e válido, o do processo, com seus princípios, garantias, regras e rituais. Luhmann é quem tem razão, a legitimação é pelo procedimento. E eu, em matéria de processo, prefiro aquele outro poema de cummings em que, numa tarde de inverno (na hora mágica em que “is becomes if”), um palhaço, sem uma palavra, lhe estende uma flor.

 

Escreve à sexta-feira