É este o legado que queremos deixar aos nossos filhos?


É preciso combater a ideia de que os Estados-membros podem rejeitar as normas e os princípios europeus apenas por não se sentirem confortáveis com os mesmos. Caso contrário, o Estado de direito como princípio de adesão à UE pode tornar-se irrelevante


1. Öcsény é uma aldeia de 2500 habitantes no sul da Hungria. Nela vive Zoltán Fenyvesi, um professor de História de 61 anos. Este professor é proprietário de uma pensão modesta na aldeia. Há vários anos que oferece semanas de férias gratuitas a crianças desfavorecidas e a crianças ciganas. Este ano decidiu estender a oferta a crianças refugiadas (reconhecidos legalmente e com direito de permanência na Hungria). Quando a notícia se espalhou em Öcsény o seu carro e o da sua mulher apareceram com os quatro pneus furados e o professor recebeu ameaças de morte. O caso ganhou repercussão nacional com o primeiro ministro Vitor Orbán a considerar normal que “cidadãos se preocupem”. O professor que apenas “queria proporcionar uns dias bonitos a crianças” diz-se desolado “com a normalização de um discurso de ódio”.

Os húngaros e o seu chefe de Governo já se esqueceram da história recente e que a primeira crise que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados teve na sua história, após a Segunda Guerra Mundial, foi a crise húngara.

2. A Europa vive uma chamada situação de “policrise”, parafraseando Jean-Claude Juncker – crise da moeda única e a crise grega polarizaram os debates, as “primaveras arábes” conduziram a instabilidade na vizinhança a sul, a situação ucraniana não se estabilizou, não se prevendo a prazo solução, os conflitos na Líbia e na Síria continuam por resolver e o Brexit tem consequências ainda por definir – o que por um lado coloca uma enorme pressão sobre os líderes dos 27 e por outro é acompanhada por diversas divisões sem precedentes entre os estados-membros. A crise da moeda criou as condições para uma oposição entre os países do Norte e os do Sul no que respeita às soluções que devem ser implementadas, e a “crise dos refugiados” provocou uma divisão entre os Estados da Europa Ocidental e Oriental. Todavia, e é importante salientá-lo, as divisões sobre a questão das migrações são mais profundas do que em crises anteriores. Os 27 estão divididos quanto a princípios e valores e quanto às soluções para lidar com a vida e a morte de seres humanos que fogem de zonas de guerra e de perseguições.

Se alguns países, com destaque para a Alemanha, se colocaram na linha da frente no tocante à oferta de proteção incondicional a refugiados sírios e outros, como o grupo de países do Visegrado, mostraram relutância em acolher refugiados e requerentes de asilo. Esta relutância e as divergências foram especialmente visíveis em relação ao mecanismo da reinstalação.

3. A “crise dos refugiados” mostra que, mais de quinze anos após a entrada em vigor do tratado de Amesterdão e da adopção das conclusões de Tampere ainda não existem políticas comuns de imigração e asilo.

O cenário de chegada de dezenas de milhares de refugiados às costas da Europa, era tudo menos inesperado. Os relatórios do Frontex e das Nações Unidas alertavam para esse facto. No entanto, a Europa fez vista grossa aos avisos e limitou-se a esperar que o caos humano e humanitário se instalasse. “Em vez de se prepararem para a situação, enfrentaram-na num “modo de crise urgente”, critica Yves Pascouau, Director de Políticas de Imigração e Mobilidade no European Policy Centre em Bruxelas.

Deste caos deviam retirar-se duas lições, uma relativa ao futuro imediato e a outra a um prazo dilatado. No imediato constata-se que a política de imigração continua a ser desequilibrada, com a atenção focada na gestão de fronteiras e na imigração irregular. As iniciativas na área do asilo não conduziram a um procedimento comum de asilo e a um estatuto uniforme válido em toda a União Europeia. Do ponto de vista dos cidadãos, nota Yves Pascouau, “as iniciativas da UE nas áreas mais integradas, tais como a gestão de fronteiras, dividem as opiniões. Para alguns, a UE é uma “fortaleza”, que decidiu ignorar os seus valores e os direitos humanos. Para outros, a UE implementa uma política de portas abertas que mina a segurança da Europa”. Em qualquer dos casos, as pessoas estão desiludidas. O que tem reflectido no empolamento de movimentos políticos extremistas.

A situação migratória deveria funcionar como uma chamada de atençã̃o para os líderes europeus, no sentido de repensarem de forma profunda as suas iniciativas ao nível da UE. Isto implica antes de mais o restabelecimento da confiança nas iniciativas da UE por parte dos Estados-membros e dos cidadãos. Exige também, em segundo lugar, a definição de respostas políticas a longo prazo, baseadas em cenários a longo prazo e envolvendo a coordenação entre diversas áreas políticas da UE.

Por outro lado há que combater a ideia de que – como o fizeram os países de Visegrado – é́possível rejeitar as normas e os princípios europeus apenas por os Estados-membros por razões de calculismo político interno não se sentirem confortáveis com os mesmos. O Estado de direito consagrado como princípio de adesão à̀ UE torna-se assim irrelevante, bem como todo o projeto comunitário. A obtenção de resultados nesta área exige um forte empenho por parte dos Estados e instituições para convencer os parceiros relutantes a implementar as normas da UE, através do diálogo ou mesmo da força, pelo recurso a sanções jurídicas e financeiras.

4. Enquanto os líderes da UE perpetuarem a sua estratégia suicida de ignorar a realidade para além das suas fronteiras, crianças, mulheres e homens vão continuar a morrer nas rotas migratórias e às portas da Europa. É́ este o legado que queremos deixar aos nossos filhos?

Escreve à segunda-feira