O novo PREC, ou o processo revisionista em curso


Raquel Varela sonhou na Catalunha a sua própria versão da utopia de More


Por partilha nas redes sociais dei por mim a ser confrontado com um texto publicado num blogue da incontornável historiadora Raquel Varela com o título “Amar em Catalão”.

Não vou emitir grandes opiniões sobre a Catalunha e o que aí se passa, ou até sobre o que a autora entende que aí se passou, porque o que me chamou a atenção na publicação da ilustre historiadora não me levou tão longe na leitura do referido artigo, já que me fixou numa questão que esta aborda e que não passou além da raia.

É que, numa construção que visita num critério não particularmente claro alguns fenómenos revolucionários, Raquel Varela, praticamente no início do seu texto, afirma o seguinte: “Há um grupo de historiadores no mundo que dedicou a vida a estudar revoluções – são poucos, apesar do século xx ser o século mais revolucionário da história da humanidade. Um dos esforços que levamos a cabo é demonstrar que a violência raramente é um acto revolucionário, pelo contrário ela é quase sempre um impulso contra-revolucionário. Em São Petersburgo morreram 10 pessoas e em Moscovo, cito de memória, pouco mais de 100 no dia da revolução. Quando esta foi invadida por 14 exércitos estrangeiros morreram milhares, quem tem poder e o vê ameaçado recorre de imediato à violência para o conservar. Em Portugal, na revolução dos cravos, a violência veio da extrema-direita, na sede da PIDE, na Madeira, em Braga” (sic).

Não deixa de ser absolutamente extraordinária a afirmação de que a violência “raramente é um acto revolucionário” e, aliás, citando sem critério, podemos discutir se esta ideia faz algum sentido em actos revolucionários como a deposição de Allende, a deposição de Fulgêncio Batista e toda uma plêiade de factos históricos que desmentem, e muito, esta ideia das revoluções dos cidadãos pacíficos e das agressões dos malvados reaccionários.

Aliás, podemos e devemos interrogar-nos, pese o facto de o exército ter saído à rua em 25 de Abril de 1974, iniciando a Revolução dos Cravos, e mesmo que não tenha sido derramado sangue, se se pode, em bom rigor, ter uma sublevação militar como um acto absolutamente pacífico e não violento?

Ou defender, pesem as originalidades do processo português, que, nesse processo, a única violência registada terá sido a da extrema-direita.

Já seria difícil – a menos que se defenda o conceito do ladrão gentil e das armas de plástico com que uma senhora deputada se lembrou de reescrever os actos da LUAR, associação que se notabilizou pelos assaltos, sequestros de navios e bombas (estará a fazer escola?) – ignorar-se a violência atroz que a Revolução dos Cravos, na sua vertente do COPCON, das prisões com mandados em branco, dos tribunais populares, das ocupações selvagens, das autogestões, das nacionalizações, dos saneamentos e da reforma agrária, impôs enquanto aplicava o programa do processo revolucionário em curso (o histórico PREC).

Mas mesmo perante uma memória selectiva, numa busca não exaustiva pela mesma internet onde Raquel Varela se publica (é evidente que, em qualquer dos casos, falamos de credibilidade de publicações na internet), mais factos parecem desmentir a senhora historiadora das revoluções, nomeadamente no que trata da violência associada à Revolução dos Cravos.

É factual, reafirme-se, que houve actividade violenta de extrema-direita durante o PREC, do ELP, do MDLP e quejandos, e que a PIDE, acossada pelas massas à sua porta, abriu fogo sobre os cercantes, e muitos mais factos que são históricos como os incêndios e as bombas nas sedes do PCP e da UDP.

Mas estranha-se, ou melhor, não se estranha – o rigor histórico é um conceito alheio à ortodoxia marxista – que à historiadora tenha escapado que uma das (várias) referências que podemos citar associadas à violência do PREC é, por exemplo, a do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), que nasceu, segundo as tais fontes, de uma cisão na FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional) e, também segundo estas, se terá dedicado fundamentalmente à luta armada e que, durante o denominado marcelismo, ficou conhecido pela actividade das Brigadas Revolucionárias, grupo armado a quem esteve ligado ideológica e organicamente.

Mais referem as fontes que em 1975, ou seja, no auge do PREC e da Revolução dos Cravos, o PRP-BR recebeu 3 mil espingardas G3, e que terá sido responsável pelas granadas atiradas contra as esquadras da polícia depois de o governo ter rebentado à bomba o emissor da Rádio Renascença e de também ter atacado com bombas de fumo um comício de apoio a Pinheiro de Azevedo, entre outras coisas.

É a tal candura dos revolucionários.

Ou, acreditando nesta premissa, será que outro fenómeno de violência de extrema-direita terá sido, também, o dos assaltos ao consulado de Espanha da Rua do Salitre, na noite de 26 de Setembro de 1975, e o do dia seguinte à embaixada de Espanha na praça com o mesmo nome, ocorrido durante a manifestação do (talvez) braço armado da união nacional, então denominada, salvo erro, UDP?

Documentam ainda as fontes que o outro caso de violência exclusiva da extrema-direita referente à Revolução dos Cravos, já que a historiadora não admite mais nenhuma, terá sido aquela organização que, ao contrário do que havia sucedido em épocas e organizações anteriores, nomeadamente no caso das Brigadas Revolucionárias e PRP, e que se autodenominou de Forças Populares 25 de Abril (curiosamente adoptante no nome da data da revolução a que se associam), se notabilizou nos assassinatos selectivos e na utilização de violência extrema nas suas acções.

Segundo as mesmas fontes, e já em 1981, essa referida associação de “camisas negras”, em simultâneo com os ataques com explosivos e engenhos incendiários visando a destruição de instalações e equipamentos e com as acções de punição sobre indivíduos com recurso a disparos de arma de fogo (em geral nos membros inferiores), ainda praticava homicídios intencionais consumados e via algumas das suas tentativas frustradas, deixando um extenso obituário onde constam empresários e administradores de empresas e também o então director- -geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo-Branco.

Aparentemente, Raquel Varela sonhou na Catalunha a sua própria versão da utopia de More, e seguindo na sua visão revisionista da História, também deve ter-se convencido, ou querer convencer-nos, de que nada disto aconteceu por cá e foi só amor e beijinhos, e a extrema-direita a estragar a festa.

É assim a pós-verdade!

 

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990