Ermida. Bem-vindos à aldeia que defende um país

Ermida. Bem-vindos à aldeia que defende um país


Recusaram-se a que uma estrada os ligasse a Espanha, com medo dos roubos e do tráfico. Para sair desta aldeia de Ponte da Barca, há que voltar pelo mesmo caminho, cujas ribanceiras têm tanto de assustador como de paisagem que sufoca. A Ermida é especial e não é só por estar lá em cima.


«Where can we buy water?», perguntam dois turistas, ainda ofegantes, com ar de quem não está habituado a subir os montes do Minho. «Que diz ele?», pergunta Berlinda, de testa franzida, uma mão na anca e a outra apoiada num pau comprido que faz os lugares de bengala. «Querem comprar água», traduz José. «Oh filhos, bebam da fonte que é de graça e bem melhor que a da loja», atira Berlina, num português despachado.

José Macedo acena com a cabeça como quem diz que sim. Água da fonte e broa de milho são as duas coisas das quais mais sentia falta quando se mudou para Lyon aos 17 anos. «Sentia e sinto, que não há nada como as coisinhas de cá», explica. É por isso que aproveita ao máximo os meses de férias que lhe permitem recarregar energias. «Saio daqui com mais saúde», exclama. Até o médico que acompanha os seus problemas respiratórios lhe receita umas temporadas na Ermida para melhorar o estado de uns pulmões já debilitados.

Mas terá esta aldeia alguma espécie de poder especial? «Olhe, não sei, mas que lhe temos muito amor, lá isso temos», garante José, a quem se junta a mulher que, já habituada à azáfama da cidade, não estranha não ter sequer um supermercado para as compras do dia-a-dia. Sabe que à terça e à quinta vem uma carrinha com produtos de mercearia, quinta é dia de peixeiro, sexta vem a fruta. Já o pão, esse, é todos os dias. «Menos à segunda», lembra Berlina, a provar que os 87 anos não dão cá mote a confusões. «E temos a horta e os animais, não precisamos de mais nada», garante. E ainda bem. É que do alto dos seus 500 metros, torna-se difícil ir lá amiúde.

Autocarros não passam de Lourido, a aldeia mais próxima,   e mesmo a viagem de carro requer alguma coragem. A estrada é feita de curva contra curva, onde com alguma ginástica automobilística passam dois carros, ladeados pela segurança de uns railes feitos de madeira. E isto, até onde há railes. A partir de certa altura é fazer um esforço para que o verde da paisagem não desvie as atenções de uma estrada ladeada de ribanceiras que têm tanto de assustadoras como de incríveis.

«Outro dia vi aqui em cima um camião e fiquei espantado, não sei como veio cá parar», conta José, habituado a subir e a descer a pé a montanha, por trilhos que só os locais conhecem. Em criança descia «até às pontes», que é como quem diz até à freguesia de Entre-Ambos-os-Rios, «para apanhar o fanico», vulgo autocarro, que o levava até Ponte da Barca. «Acordava ainda de noite e já chegava da escola sem sol», lembra. Talvez por isso não tenha passado da quarta classe, altura em que começou a trabalhar nas obras. «’Tá a ver estas casas todas? Foram feitas sem que as máquinas conseguissem cá chegar», explica. «Os miúdos queixam-se das mochilas pesadas agora, não é? Eu aos 12 anos já subia estes montes carregado com sacos de cimento de 50 quilos».

A estrada até à Ermida só ficou concluída em 1978, um ano depois do nascimento do seu primeiro filho. Nesse dia, José voltou aos tempos de infância, nos quais subia as ladeiras com peso às costas. «Dessa vez era com gosto», garante, mas mesmo assim não deixou de ter que fazer uns bons quilómetros com a criança, a alcofa, o carrinho e o saco da maternidade nos braços.

Aldeia de braço no ar

Nesta terra de (quase) ninguém, é no largo da igreja que todos se juntam. Principalmente agora que Zé Carvalhal decidiu que os seus 65 anos são desculpa suficiente para abrir o único café da aldeia só de vez em quando.

Lá dentro as cadeiras e as mesas estão arrumadas a um canto, assim como as grades de ‘minis’, de longe o produto mais vendido desta casa. Cá fora já todos têm uma na mão e não falta muito para que um grupo com ares de quem vem de fora siga o ritual.

Daniel Barbosa entra no café, 17 anos depois da sua primeira visita à Ermida. «Ando num passeio pelo Alto Minho e fiz questão de vir cá mostrar esta beleza aos meus amigos», conta. E se da primeira vez Carvalhal serviu de cicerone, desta vez não foi diferente. 

«Até a resposta que me deu sobre os caminhos para cá chegar foi igual», exclama Daniel. Isto porque, apesar de escassa, a gente desta terra teve força suficiente para impedir que fosse feita uma estrada que ligasse a aldeia a Espanha. «Não quisemos abrir a porta a ladrões de gado nem ao tráfico de droga», explica Carvalhal. E assim se cumpriu a vontade da população.

É por isso que a resposta dada a Daniel foi a mesma de há 17 anos. «Sair daqui? É virar para trás e voltar por onde vieram», repete Carvalhal.

Com esta conversa toda, já está mais do que na hora de fechar o café, até porque o adro da igreja serve de esplanada improvisada. Carvalhal junta-se aos que estão cá fora e, tendo em conta que a nossa visita apanhou ainda os dias em que falar de campanha era mais do que permitido, as autárquicas são o tema central das conversas.

A aldeia está rodeada de cartazes e as caixas de correio cheias de panfletos com listas de promessas. «De quatro em quatro anos fazem tudo, não é?», lança António, sabendo que terá um coro de confirmação. Fernando aponta para o fundo da rua e dá um exemplo: «Há ali uma estrada com as medições feitas há anos. Sabe quando foi feita a obra? Há oito dias».

Apesar de se sentirem esquecidos, por estarem lá no alto, a verdade é que por esta altura os moradores desta aldeia já receberam a visita de todos os partidos que vão a votos amanhã. «Já nos deram chapéus, lapiseiras, porta-chaves», enumera Fernando, «nesta altura não falta dinheiro». Nem ideias para a terra. Se à direita prometem a recuperação das lagoas e praias fluviais para chamar turistas e o apoio à criação de rebanhos de cabritos, para que sejam certificados como «cabrito da Ermida», à esquerda fala-se da requalificação de estradas, do cemitério e a limpeza dos montes, para facilitar a vida aos sapadores florestais.

Apesar de todos já terem o voto mais que certo, ninguém o verbaliza, até porque isto do anonimato é coisa nova por aqui. Com menos de 150 habitantes, até à união de freguesias que a juntou a mais duas, a Ermida conjugava as condições que lhe permitiam escolher o seu líder em plenário, com votação feita de braço no ar. «Nós é que nos governávamos, não precisávamos de ninguém», resume Carvalhal.

A vizinha Germil

Já deu para perceber que este pontinho no cimo da montanha tem força mais do que suficiente para continuar a obrigar quem quer cá vier a passar por estradas apertadas, curvas contra curvas e uma altitude que até entope os ouvidos.

Dizemos adeus aos que ficam, sabendo que não é preciso perguntar como se volta a casa. Mas há quem aproveite para lembrar. «Já sabe menina, é por onde veio», brinca Carvalhal que, apesar de cego desde que se lembra, teve cabeça para manter um negócio, coração para constituir família e olhos suficientes para guardar na memória as paisagens que – mesmo pouco tendo saído daqui -, garante, «não há igual em mais lado nenhum».

Seguimos então montanha abaixo, sem conseguir resistir a um desvio quando a próxima placa diz «Germil». Se na Ermida as pessoas se contam pelas caixas de correio – «Estão lá umas 40», dizia-nos José, à chegada -, Germil faz parte da lista do Instituto Nacional de Estatística que conta os lugares com menos de vinte habitantes. E é para uma aldeia de 12 pessoas que nos dirigimos, numa estrada sem proteção lateral, o que, em termos de segurança, faz com que não passemos da segunda na caixa de velocidades, mas, em termos de vista, já o Carvalhal dizia, «não há igual».

A aproveitar a sombra dada pela videira que já só tem folhas, tendo em conta que os tempos são de vindimas, está Albino Souto. Com 79 anos, passa o dia entre a casa e o café da aldeia, uma vez que sair daqui é cada vez mais difícil. As barreiras aqui não são a idade que trava os movimentos ou a bengala que tem nas mãos e que faz prever alguma dificuldade em andar. O que lhe falta é a camioneta que o levava a Ponte da Barca, onde gostava de ir passear, ver gente e, claro, levantar a reforma. «Agora que deixou de haver,  só de táxi e isso ainda fica aí uns 25 euros ida e volta, não é brincadeira», admite.

Viveu 40 anos em França, esteve na guerra em África, mas foi Germil que escolheu como casa para os últimos dias, assim como o foi nos primeiros. Fica contente por ver as pessoas de fora virem de propósito para conhecer a aldeia, porque lhe dá prazer ver que «há quem goste disto». Mas atenção: «Não há quem goste disto como eu». A mão treme mas ainda chega firme ao peito. E é com ela aberta sobre o coração que nos explica: «Esta terra é daqui».