“A repressão de milhares de pessoas que só desejam votar não me entra na cabeça”

“A repressão de milhares de pessoas que só desejam votar não me entra na cabeça”


Um dos organizadores do movimento que levou ao referendo é de origem portuguesa e diz que de um lado estão os colégios eleitorais, as urnas, os boletins de votos e a vontade dos catalães de votarem e, contra isso, Madrid só consegue opor a repressão, o que é muito pouco para impedir a independência.


A Assembleia Nacional Catalã é o principal movimento unitário que levou a cabo uma campanha, desde a sua fundação em 2012, para criar um processo que permitisse um referendo e que os catalães pudessem proclamar a sua independência. Foi na preparação do último ato de campanha, na sexta-feira, junto à fonte de Montjuic, que um dos seus dirigentes e responsável pela comunicação da ANC falou ao i. Horas antes de dezenas de milhares de pessoas lotarem a zona dos recinto das feiras de Barcelona, ao lado da Praça de Espanha, Adrian Alsina, catalão com mãe portuguesa, disse-nos as suas esperanças depois de 500 atos de campanha. No comício, que durou mais de três horas, falaram dezenas de artistas, músicos, ativistas de movimentos sociais e representantes de partidos políticos – para além dos independentistas, apoiaram o referendo, por razões de democracia e de liberdade, os oradores do Podemos e do movimento da presidente da câmara de Barcelona, Ada Colau. 

É de origem portuguesa?

A minha mãe é portuguesa, sinto-me muito próximo da cultura portuguesa. Penso que a Catalunha é muito próxima de Portugal. Embora tenha plena consciência que durante grande parte do século xx estivemos afastados.

Estamos pelo menos historicamente ligados, quando Portugal e Catalunha se revoltaram no século xvii. Os espanhóis perante as duas revoltas escolheram concentrar as suas forças na Catalunha.

É verdade. Mas como é um dado histórico com 300 anos, por vezes muita gente ignora-o.

O seu pai é catalão?

O meu pai é catalão e imagine só, quando ela comunicou aos meus avós que se ia casar com um catalão, a resposta do meu avô não foi nada favorável, disse-lhe: “antes com um preto do que com um espanhol”. Nesses tempos os preconceitos eram outros e, sobretudo, as pessoas não conseguiam distinguir em Portugal as diferentes nacionalidades existentes no Estado espanhol. A minha mãe era de Lisboa, mas a família é da zona oeste de Portugal. 

Como é que aparece na política catalã?

Eu sempre gostei muito de intervir politicamente. Mas apareço na política a partir da economia e de estudar as políticas económicas, e a partir deste estudo, a necessidade de uma intervenção política aparece claramente. Estudei economia e jornalismo. Comecei a envolver-me na política estudantil na faculdade. Durante algum tempo cheguei a militar na Esquerda Republicana da Catalunha. Depois larguei isso para trabalhar, na TV3, num jornal económico de Barcelona, que entretanto fechou, e depois cansei-me da situação, estávamos na situação da bolha imobiliária. Fui para Madrid para fazer um mestrado e acabei a trabalhar no Brasil – mal falo nisso, começo a falar com sotaque brasileiro [risos]. Passei um ano lá, a trabalhar como chefe de comunicação da delegação económica de Espanha. E foi no Brasil que me tornei um independentista catalão. Foi a trabalhar para o Estado espanhol que me tornei independentista. 

As condições laborais não deviam ser muito boas (risos)…

As condições eram ótimas. Mas pela primeira vez entendi, num sítio que era uma delegação do coração do Estado espanhol, que os espanhóis não ligavam nada ao que pensavam os catalães. Trabalhávamos mais de 20 pessoas com alta formação e que falavam idiomas estrangeiros, e lá presenciei várias discussões, em que percebi o lugar que nos estava reservado. Foi na altura que se discutia o novo Estatuto da Catalunha. Eu saí da Catalunha para o Brasil, pensando que havia o PP, que era claramente anticatalão, mas que havia uma maioria em Espanha, começando pelo PSOE e os vários partidos de esquerda, com a qual se poderia dialogar e chegar a uma solução mais federal. E foi lá que eu percebi que isso era uma quimera. O Estado espanhol é nacionalista espanhol, e a grande maioria desses partidos comungam dessa posição. Era algo que eu não tinha percebido até aí. Este processo de aprendizagem foi comum à grande maioria da população da Catalunha. Não estamos numa luta política normal, mas num contexto de poder e nacionalismo, em que há um nacionalismo dominante, o espanhol, que quer manter-se a subjugar as várias partes que constituem até hoje o Estado espanhol. O Estado espanhol usa o nacionalismo para ficar ainda com mais poder.

Rajoy é galego, González é andaluz. Isso não contesta esse argumento?

Mas quantos presidentes catalães houve? Só um e “cortaram-lhe a cabeça” [Francisco Pi y Margall durou menos de um ano em funções]. Mas vamos ver em termos das elites de Madrid, que inclui o próprio Mariano Rajoy. Ele é filho de um juiz e por coincidência da vida, todos os filhos desse juiz enveredaram pela mesma profissão de jurista que regista propriedades. São famílias que estão completamente imbricadas com o poder do Estado. 

Mas grande parte dos maiores grupos industriais do país também existiam na Catalunha.

O que conseguiu o Estado espanhol, e isso foi uma construção do franquismo, foi concentrar a maior parte do poder em Madrid. Se observarmos o índice bolsista das maiores empresas espanholas, vamos ver que a esmagadora maioria tem sede em Madrid, uma grande maioria dependem do orçamento do Estado ou evoluíram de antigos monopólios estatais. Depois há exceções como a Mango que não dependem de negócios patrocinados pelo Estado.

Umas das coisas que gente dos partidos que são contra o referendo e independência defendem é que esta Constituição em vigor em Espanha foi votada também pelos catalães, e que o chumbo do Estatuto da Catalunha só incidiu em pouquíssimos artigos, e que os independentistas estão contra a unidade de Espanha mas essa razão do Estatuto não colhe.

Isso é muito engraçado. Os Ciudadanos dizem que 90% do Estatuto da Catalunha, aprovado pelo parlamento catalão e pelas cortes espanholas e referendado pelos catalães, está intacto. Mas é como eu dizer que então vamos tirar só 5% dos artigos da Constituição espanhola, mas eu é que decido qual é a parte que retiro: vou retirar por exemplo a monarquia e a indivisibilidade da Espanha. E depois digo-lhes: “só tirei duas frases, o resto do documento está exatamente igual”. 

Quais foram os artigos chaves do Estatuto que foram retirados?

Foi sobretudo a justificação que enquadra a sentença do Tribunal Constitucional que vem dizer que não importa o que diga qualquer lei que emane do parlamento catalão no âmbito dos seus poderes, porque qualquer lei, ou regulamentação aprovada por um qualquer organismo do Estado central passa automaticamente por cima. Isso significa que, a partir desse momento, a  autonomia fica completamente esvaziada. Não há um pacto federal subjacente na própria Constituição de 78, que afirma que algumas competências são exclusivas das comunidades autónomas, outras partilhadas e finalmente algumas que caberiam apenas ao Estado central. O que essa sentença vem fazer é que não há âmbito de decisão da autonomia, que não possa ser esvaziado e contraditado por um qualquer organismo de Madrid. As interpretações do Tribunal Constitucional acabaram por liquidar muita da autonomia. Vejamos um exemplo concreto, a Constituição diz que o ensino e a saúde são competências exclusivas dos governos e das instituições da comunidades autonómicas. O que aconteceu é que Madrid, entretanto, fez um conjunto de leis e regulamentos que definem quase tudo: desde o tipo de medicamentos, desde o tipo de contratos, até no caso do ensino, mais de 70% das decisões de trabalho e matérias lecionáveis são decididas por Madrid e há uma redução progressiva da capacidade de decisão dos governos e instituições autónomas em áreas que eram da sua exclusiva responsabilidade. De regulamento em regulamento burocrático foi-se restringindo o poder de decisão da população das comunidades autónomas. Isso com o beneplácito e apoio de um Tribunal Constitucional cada vez mais partidarizado e que é a expressão do nacionalismo espanhol. 

Os deputados dos Ciudadanos afirmam que muitas vezes a redação das leis por parte da maioria independentista é feita para provocar esse chumbo e não resolver as questões da população

Não me parece um argumento verdadeiro. Muitas das leis aprovadas, tal como a da pobreza energética ou outras como a de igualdade de género, contam com o apoio no parlamento da Catalunha e de fora dele com um número muito superior de deputados, partidos e associações, que certamente não o dariam se não estivessem de acordo com o propósito político e social dessa legislação e se ela fosse um mero expediente para agudizar o confronto com Madrid. Se a maioria esmagadora está de acordo com essa mudança ela é para ser aplicada e não para ser chumbada pelo Tribunal Constitucional.

Como aparece nestas funções de destaque na Assembleia Nacional Catalã, que promoveu as manifestações e as ações que colocaram na ordem do dia a questão da independência e do referendo?

Sou o chefe de comunicação da Assembleia Nacional da Catalã, que não é um partido nem é um parlamento. Ela é a maior organização social da Catalunha, que apareceu há muito pouco tempo, em 2012, como uma plataforma unitária para quebrar a dinâmica de conflito entre partidos catalanistas. E, por outro lado, para colocar em cima da mesa, a questão da independência e do referendo. É a partir desta estratégia que se verificam as mobilizações gigantescas para as Diadas, o dia da Catalunha. Até então, os grandes partidos, tanto a Esquerda Republicana como a Convergência, atual Partido Democrático da Catalunha, tinham, sobretudo a ERC, a ideia que a independência era algo de positivo mas longínquo.  

No fundo, o ANC colocou a questão na ordem do dia através das mobilizações?

Exatamente, no fundo era dizer aos dirigentes da Convergência e da Esquerda Republicana: atenção, os vossos eleitores e militantes já querem a independência. Vocês ainda não se deram conta, provavelmente devido a alguma das vossas agendas, mas os vossos votantes, milhões deles que vão às nossas manifestações, já estão a dizer que é a independência ou, pelo menos, um referendo que querem. 

Irão conseguir a independência?

Não. A 1 de outubro não vai haver a independência, não porque sou eu a dizer, mas porque a própria lei do referendo não o permite fazer desta forma. A lei do referendo fala que uns dias depois de os resultados serem apurados, e caso sejam pela independência, o parlamento proclamará a independência. Mas isso é um conceito amplo. Uma coisa é uma proclamação outra é o seu estabelecimento. Começa-se um processo, que depende da reação de Espanha e de outros países da Europa, até conseguir atingir essa independência.

Mas isso exige que o referendo seja credível. Como é possível credibilizar um resultado com 10 mil guardas civis, mais polícias locais a tentarem fechar colégios eleitorais e apreenderem urnas de voto?

Para já, do lado institucional catalão, temos o compromisso do governo e do parlamento catalães de proclamarem a independência caso haja uma maioria de votos no referendo favoráveis à independência. Este primeiro passo é institucional; depois há um segundo passo logístico: acabaram de mostrar nas televisões em que o governo assegura ter os colégios eleitorais, as urnas e as pessoas para constituírem as mesas eleitorais. Os colégios estão lá, os boletins de votos estão, e o governo mostrou que tinhas as urnas. A única coisa que falta é as pessoas acorrerem em massa para votar. Todas as sondagens dão que uma enorme maioria dos catalães quer ter direito a participar neste referendo. Tudo isto existe. O que temos pelo outro lado: temos um Estado que está a boicotar este processo.

Isso assim parece simples, mas não existe decisões judiciais e forças policiais destacadas para a Catalunha para evitar que esta votação aconteça. Como é possível dar confiança aos eleitores quando há a ameaça da justiça espanhola de não só processar os organizadores do referendo, como os membros das mesas e até os eleitores?

O Estado disse muitas coisas ao longo destas últimas semanas. Disse que não haveria campanha eleitoral para o referendo. E nós fizemos 500 atos coorganizados pela Assembleia Nacional Catalã. E hoje (na sexta-feira) estamos a finalizar aqui em Barcelona esta campanha. Está a ver a polícia a impedir este ato. Hoje você verá 100.000 ou 80.000 pessoas, muita gente a participar nesta grande iniciativa. E o Estado espanhol não a pôde parar. O Estado disse que não haveria infraestruturas para votar, mas só conseguiu encontrar cerca de um milhão de boletins de voto. Não encontrou sequer as urnas. O Estado trouxe cerca de dez mil polícias, milhares deles paramilitarizados, como é a Guarda Civil, das várias regiões de Espanha, como se fosse uma invasão. 

No fundo está-me a dizer que o Estado não fez nada de importante para impedir o referendo.

Houve algumas coisas importantes. Detiveram vários responsáveis do governo catalão. O presidente da nossa organização já tem uma acusação aceite pela a Audiência Nacional, que não passa de um tribunal político, herdeiro do antigo tribunal franquista chamado Tribunal da Ordem Pública. Foi uma coisa que só mudou de nome e entrou normalmente como se fosse uma instituição democrática, que é uma coisa que sucede muito em Espanha. O que vai acontecer no futuro? Isso só pode responder o governo espanhol e o seu ministro do Interior. O que nós não podemos fazer é acusar de antidemocracia o lado que quer que as pessoas possam expressar a sua vontade com o voto e absolver aqueles que querem impedir que as pessoas se expressem. 

Não acha que a Guarda Civil não vai aparecer e destruir os papéis?

Não sei o que vai fazer a Guarda Civil. Confio que os Mossos d’Esquadra irão fazer um grande trabalho a manter a ordem, defender a sociedade de ataques terroristas e fazer o seu trabalho. A polícia catalã não tem nenhuma vontade de reprimir cidadãos catalães, tal como garantiu o ministro do Interior catalão. 

Mesmo sob o comando de um oficial da Guarda Civil?

Por agora esse comando não foi mais do que propaganda. Não passaram de duas reuniões. E depois tenho muita confiança que a maior parte dos polícias espanhóis são bem mais sensatos do que os comandantes políticos que têm.

Na prática que desobedeçam às ordens?

Não é preciso desobedecer a ordens, há muitas maneiras de obedecer a uma ordem. Se não o fizer, o governo espanhol vai ter de explicar como vai reprimir milhares de pessoas nas ruas. É uma imagem que ainda me parece inimaginável. Para nós a nossa intenção é determinada, podem acontecer milhares de coisas até dia 2 de outubro, mas se o resultado for claro, esperamos que o parlamento cumpra o seu compromisso de declarar a independência e abrir uma nova era.