O email e o urinol de Duchamp


Já sabemos que as palavras se prestam a tudo, e podemos ver nelas tanta coisa que outros nem imaginam. Vão mais longe as palavras do que o urinol que Duchamp colocou invertido e que foi para uns uma aberração, para outros um logro e, para muitos, uma genial obra de arte


Não sei se o(s) inventor(es) do email tem (têm) um peso na consciência como o que Alfred Nobel carregou em relação à dinamite, mas devia(m) ter. O correio eletrónico é um bom exemplo de uma invenção com boas intenções e muitas aplicações positivas, mas que também tem aspetos, utilizações e efeitos muito nefastos. O mais óbvio é aquilo a que chamo “a perseguição instantânea”, ou seja, o email persegue-nos, submerge- -nos, interpela-nos e exige-nos muito e a todo o tempo. E existe a ilusão de que enviar emails é como conversar, e que a resposta está ali a uns palmos de distância, fácil e pronta. Mas não, não é assim, e quantos equívocos, mágoas, tensões, desgastes e desgostos essa ilusão gera. E se a isso juntarmos o mau uso e o abuso do email, sobretudo em “circuitos fechados” (amigos, famílias, empresas, círculos, instituições, etc.), em que todos mandam a todos correio eletrónico a toda a hora e a propósito de tudo e nada (e cujo registo fica para sempre), então há dias em que apetece matar e enterrar fundo esta invenção e regressar aos dias em que se falava mais, em que se pausava mais e em que se escrevia mais e melhor.

Mas o principal defeito e o maior efeito secundário maligno do email prendem-se com outra coisa: as armadilhas da interpretação. Não é que as conversas cara a cara ou as cartas não possam, também, cair nelas, aliás como tudo o que é palavra e comunicação, pois sabemos bem que a interpretação é o diabo. Não vou ao ponto de me proclamar, como Susan Sontag no seu célebre ensaio, “against interpretation”, mas que há que ter muito cuidado, lá isso é verdade, uma verdade que às vezes se aprende a fogo. E nas conversas há o cara a cara, com tudo o que isso traz de riqueza e nuances e auxílios à interpretação, e nas cartas há a pausa, a espera, a largueza de palavras, e tudo isso, embora não afaste, pode mitigar as armadilhas interpretativas.

No email há imediatismo, falsa proximidade, poupança de palavras, tudo a militar no sentido dos possíveis equívocos. E já sabemos que as palavras se prestam a tudo, e podemos ver nelas tanta coisa que outros nem imaginam. Vão mais longe as palavras do que o urinol que Duchamp colocou invertido, chamando-lhe fonte, e que foi para uns uma aberração, para outros um logro e, para muitos, uma genial obra de arte. Não há nada mais perigoso do que as palavras. Elas ferem e são muito esquivas e equívocas. O que para mim é velho para ti é vintage, o que para ti é ofensa para mim é elogio, o que para mim é crítica para ti é cuidado. E assim vai o mundo, chorando e rindo com palavras e por sua causa, e perseguindo a questão de saber se haverá verdade numa interpretação. Não sei a resposta, mas sei que todo o cuidado é pouco com as palavras e, em especial, com esse perigo quotidiano e instantâneo que é o bendito email. E não é de mais recordar o gracejo de Gertrude Stein ao amigo que lhe disse que, se soubesse francês, faria amor com a mulher de Picasso, ao que Miss Stein retorquiu que ele fazia amor com palavras.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira