Ljubljana. “Não é com os olhos que se vê a natureza das coisas”

Ljubljana. “Não é com os olhos que se vê a natureza das coisas”


Ljubljana é a calma, o verde, o ar fresco. É ver os Alpes com neve ao longe, são os rios, as famílias ao ar livre, casais de mãos dadas e os jovens a fazer jogos nas ruas. Ljubljana é o Pavle, uma conversa inesperada e um sem-abrigo “feliz”


Está sol. Há luz em todo lado e as montanhas estão cobertas de neve. No nosso quarto, um casal de viajantes com alguma idade arruma as coisas para ir embora, não me dizem mais do que um bom dia sorridente. A Diana ainda dorme, viajou quase 48 horas seguidas. Desço as escadas e dou de caras com um bar de hostel cheio de locais a almoçar. As refeições fazem-se mesmo cedo, as pessoas comem a uma velocidade estonteante e às dez da noite, por ser tarde, já não se servem cafés nos restaurantes.

Saímos a pé para conhecer Ljubljana. Não quisemos ver fotografias antes de chegar, sabemos apenas que não podemos perder a oportunidade de conhecer o Museu das Ilusões que abriu há um ano. As ruas de Ljubljana são limpas, não há trânsito, as pessoas parecem-nos um pouco carrancudas, mas não tarda até percebermos que não é mais do que um lamuriar instintivo contra a chegada do outono.

Passeámos pelas pontes, sentimos o ar fresco do rio gelado. Um senhor de 70 anos passeia três cães terapêuticos. “São educados para ajudarem a fazer as pessoas felizes, podem pegar-lhes”, diz-nos, com um sorriso enorme no rosto. Crianças aproximam-se, a terapia baseia-se em não deixar que a solidão “nos coma os ossos”.

Em viagem tudo é posto em perspetiva. Eu, que sempre adorei viajar sozinha, sem correntes, sem horários, sem planos, temia que viajar em equipa, em trabalho, fosse tornar-se um peso ao amor que tenho pela minha solidão. Mas vai daí que é impossível sentir-me mal quando a sincronia se compara a dois membros de um só corpo, ao ponto da Di se apresentar como Ana e apontar para mim como Diana e logo se aperceber da barbaridade que acabou de deixar escapar. Dizem-se frases ao mesmo tempo e as pessoas riem-se com a simbiose de duas colegas e boas amigas.

Sentamo-nos numa esplanada à beira rio e começa a nossa jornada de adoração ao café por estas bandas – mais tarde haveríamos de perceber que, talvez fosse a sorte, talvez seja a norma, o café da Eslovénia mostrar-se-ia como algo a repetir. De repente as ruas estão cheias de pessoas felizes, que passeiam em bicicletas, de mãos dadas, com os filhos. Tantos filhos, tantas crianças, tanta vida.

Comem-se gelados com casacos compridos vestidos, há livros nas mãos dos que se encostam em recantos luminosos. A época do turismo desenfreado já terminou e consegue-se perceber a rotina dos que cá vivem.

Lembrei-me de mandar mensagem à Olga, eslovena com quem vivi três meses em Roma, na casa do Davide, italiano que nos acolheu nessa altura. Já não a via há seis anos e reencontrá-la foi não só refrescante à alma como também nos deu uma enorme ajuda, já que com o jantar viria um enorme conjunto de conselhos sobre a viagem. No Museu das Ilusões revivemos a infância e a admiração com que olhámos para as novidades quando éramos crianças. A ideia surgiu em Zagreb, de dois amigos arquitetos que queriam criar algo único e o resultado são mais de 40 tipos de ilusão de ótica, hologramas, jogos da mente, criando um conceito único de diversão e aprendizagem em toda a Europa.

A Olga estava mesmo em Ljubljana e veio ter connosco. No meio das ilusões, estávamos de volta ao mundo feliz e universal, como o que nos faz recuar aos dias de praia em que brincávamos com estranhos, mesmo que não falássemos a mesma língua, ou das tardes em jardins com crianças que não conhecíamos a atirar pão aos peixes em lagos turvos. Não houve como sentir constrangimento da distância e do tempo que passou estando no meio de tanta alegria. Fomos jantar a um restaurante tailandês, já que a comida tradicional eslovena, segundo os próprios, é um terrível aglomerado de carnes.

Estava à procura de maneira para chegar a Velenje, mas não havia BlablaCar nenhum. Foi aí que a Olga nos explicou que, na Eslovénia, a app mais famosa de boleias é a Prevoz, criada há muitos anos por um estudante universitário. Encontrámos logo boleia para lá por apenas quatro euros.

Depois de nos levar de carro até às muralhas do castelo de Ljubljana, despedimo-nos da Olga já à porta de Metelkova, o bairro alternativo onde ficava o nosso hostel. Era o regresso noturno àquele lugar e por isso, já que esta noite havia luzes, queríamos descobrir música e pessoas. Num placar lia-se uma ordem para não se tirarem fotografias, a cerveja ficou por um euro e vinte. Sentámo-nos a observar os tantos jovens que circulavam até que um homem passa com ar de quem está com a cabeça num sítio longe dali.

À primeira não nos falou em inglês, respondia em esloveno, mas insisti. Não me disse a idade, pediu-me que adivinhasse mas como nunca faço ideia das idades das pessoas tive de lançar uns simpáticos 35 anos para o ar. Riu-se à gargalhada, tínhamo-lo conquistado.

Pavle nasceu em Ljubljana há muitos anos, assistiu ao governo a tentar demolir Metelkova e aos estudantes que mobilizaram a população através da rádio para salvarem o bairro que era de ninguém e de todos. Tem viajado por onde pode e a casa vai alternando conforme os dias.

Os biscates trazem-lhe “as bananas e o leite mais o pãozinho” que comprara naquele dia. Não nos pede dinheiro, não nos chora nada. Fala só com um sorriso enorme no quanto agradece poder ser vivo e saudável. Diz ser feliz. Fala-nos da sua paixão pela Bósnia, pelos rios que chegam a Ljubljana e conta-nos lendas de dragões e castelos.

Não quer cerveja porque tem com ele o sumo que conseguiu comprar com o que recebeu pelos talheres que lavou no último restaurante. Há quatro dias comprou um telemóvel novo, é dos antigos, sem internet. Pede-nos uma fotografia com ele, mas não há câmara para selfies – é mesmo com o telemóvel virado ao contrário. No fim, despede-se com abraços, a falar das árvores centenárias e das flores que não são de lá.

Já de bicicleta em andamento, encontra-nos na estrada e pede-me que abra a mão. Sementes verdes, reconheço o cheiro. “Sabe o que é isto, menina?”, pergunta. Sei muito bem, embora nunca tivesse visto sementes, apenas o que se faz das folhas e das flores. “Mas eu não tenho dinheiro para lhe pagar isto”, digo-lhe, sem saber o que fazer com as sementes de canábis que tinha na mão. “Não quero dinheiro nenhum. Isto é para que possa ver a vida como ela é, não é com os olhos que se vê a natureza das coisas, rapariga”, respondeu-me. “Então mas e o que lhe posso dar em troca?”, perguntei. E já ao longe, enquanto pedalava sem olhar para trás, respondeu: “Mandem fotografias da Bósnia.”