Numa coisa concordo com Trump e, claro, com Guterres: a ONU é uma máquina pesada, cheia de procedimentos inúteis e com um extenso caderno de encargos de burocracia. Na minha atividade profissional trabalho, quase diariamente, com uma agência das Nações Unidas (a União Internacional das Telecomunicações), e as dores de cabeça são constantes.
É compreensível que numa entidade multicultural, multirracial e de vocação mundial se criem procedimentos que evitem a corrupção e a má utilização de recursos. Grande parte desses procedimentos (senão a totalidade) são criados pelas lideranças no intuito de reparar erros anteriores ou darem um cunho pessoal à organização. Até aqui, tudo bem; o problema é que, ao implementarem-se novos procedimentos, ou eles não visam a simplificação ou raramente se eliminam anteriores. É como se juntassem, sucessivamente, redes de malha mais fina que acabam por estrangular o funcionamento das organizações. Imperam depois um conjunto de arquiteturas e procedimentos alternativos que, embora legais, deixam transparecer que não há forma de controlar os processos de tomada de decisão.
O desafio de Guterres é incomensurável. Estou certo de que tem noção disso e tenho a certeza de que dará o máximo para o vencer. A reforma política não parece estar no horizonte, como aliás se ouviu nas palavras de Trump. As referências foram em torno da inoperância, da burocracia e do excesso de investimento sem resultados visíveis, a não ser no acréscimo dos custos com pessoal.
Esse é, aliás, outro problema e que, sob pena de poder ser mal interpretado, ouso tocar: as agências das Nações Unidas tornaram-se uma espécie de bolsa de emprego dos países menos avançados. Os critérios discricionários de seleção tornam quase impossível que um candidato oriundo de um país dito desenvolvido tenha hipóteses quando em disputa com outro candidato de um país menos avançado, mesmo que com menores competências.
Em teoria, a Carta das Nações Unidas aponta para que “prevalecerá na escolha do pessoal e na determinação das condições (…) a necessidade de assegurar o mais alto grau de eficiência, competência e integridade”. Acrescenta ainda que deverá ser também levado em conta “o mais amplo critério geográfico possível”. Na prática, não se verifica.
Tenho assistido ao longo dos últimos anos a vários procedimentos concursais na UIT e garanto-vos que existe discricionariedade. Conheci vários candidatos portugueses que ficaram pelo caminho e conheci os titulares escolhidos dos cargos para os quais concorreram, e asseguro-vos: os critérios de seleção não foram a eficiência, a competência e nem tão-pouco a integridade. As escolhas foram, invariavelmente, personalizadas e politizadas, acrescidas de uma componente fortemente regional. Na UIT, apenas como exemplo, não existe à data nenhum português entre os mais de 700 funcionários. Já houve, em tempos, e era o bibliotecário e, garanto-vos, temos profissionais capazes de desempenhar outras funções, naquela organização, para lá de organizar livros.
Esta será, porventura, uma das principais razões da fragilidade e da inoperância das agências das Nações Unidas. E esta será, provavelmente, uma das pedras-de-
-toque da reforma que Guterres conta realizar. Não sou antirreformista, antes pelo contrário, mas se a reforma tão almejada não contemplar os procedimentos de seleção, serei cético quanto à reforma.
Escreve à quinta-feira