“Já me esforcei – a palavra é esta – por escrever coisas para filmar a cidade e não consigo.” Diz Marta Mateus, que começou por ser atriz mas sempre a querer ser realizadora e que é, por fim, a descobrir que não haveria outro lugar para os seus filmes. Para este e para os que vierem. “Vou sempre parar ao campo. Foi aí que nasci e a partir daí que trabalhei neste filme e é aí que me interessa voltar e continuar a trabalhar, pelo menos por agora.” Ao campo, ao Alentejo, numa história sem princípio e sem fim, pelo presente e o passado numa correria de crianças que foi descobrir em Estremoz, onde nasceu e cresceu e aonde regressa sempre, como regressou para filmar no inferno que é um verão quente no Alentejo “Farpões Baldios”, o filme que depois de anos a estudar Fotografia, Desenho, Filosofia, Teatro, Música, tudo o que viesse um dia servir esse “exercício do olhar” que é fazer Cinema, marca a sua estreia na realização, depois de mais de uma dúzia de filmes em que foi atriz. Filme que terminou para estrear em Cannes, na Quinzena dos Realizadores, em maio, para logo dois meses depois sair das Curtas Vila do Conde como vencedor do grande prémio internacional.
E se a viagem de “Farpões Baldios” há de continuar, importa agora saber que está por cá para ver em sala (em Lisboa, no Cinema Ideal, e em Gaia, no UCI Arrábida), em conjunto com “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, e “Coelho Mau”, de Carlos Conceição, na sessão “3 Novas Curtas Portuguesas”, num gesto de tornar mais acessível ao público um formato que raramente chega ao circuito comercial mas de onde tem vindo boa parte do reconhecimento internacional do cinema português nos últimos anos.
De volta ao Alentejo e a este filme que não tinha como não ser português – “penso que é português, sobretudo pelo que está à frente da câmara, porque é feito com portugueses, reais, que não querem ser nem franceses nem outra coisa, e essa cultura é muito bem marcada” – mas em que Marta Mateus vê mais do que isso, vê o Cinema inteiro, de Jean-Marie Straub a Orson Welles, Godard ou Chantal Akerman, a quem agradece no genérico do filme, ou até bem lá atrás, ao encontro de Eisenstein, de Buñuel ou Chaplin.
“No Cinema não estamos a inventar nada de novo, pelo menos não tenho essa pretensão. A linguagem já existe, portanto o que estamos a fazer é experimentar essa gramática a partir do que já vimos, do que aprendemos, do que apreendemos e relacionar isso tudo com o que estamos a filmar, quem estamos a filmar. É um exercício do nosso olhar, é essa a preocupação de um realizador. Mas eu já via assim quando era criança e lembro-me, quando percebi que queria ser realizadora, percebi que aquilo que vivia na infância – o estar no campo e a maneira como recebia aquela paisagem – tinha a ver com esse princípio, com essa imaginação.”
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Imaginação, toda a que vem com as memórias, das vividas às construídas a partir de uma maior, da coletiva, das lendas e das histórias verdadeiras que são as da fome e as da Reforma Agrária, do que estava antes e o que veio depois, por esse universo se abre “Farpões Baldios”. “O que me interessava sobretudo era a relação que as pessoas têm ali com aquela paisagem. Os trabalhadores rurais, porque trabalham na paisagem, trabalham com a Natureza e estão absolutamente ligados a ela como uma força maior. E por isso quis levar as crianças para o campo, numa experiência de liberdade, no Cinema, claro, numa possibilidade de liberdade e de descoberta da Natureza.”
Hão de ser essas crianças, a que a realizadora chegou através de um casting feito em Estremoz para este filme que é de ficção mas em que não há atores, filmado com trabalhadores, com gente daquele lugar – “há realizadores que procuram exatamente o trabalho com atores e que gostam de trabalhar com atores, muitos deles admiravelmente, mas a mim interessa-me outra coisa” – a guiar-nos pelo que não é uma história, mas memórias: as que Marta Mateus tinha da sua infância, do tempo que passou no Alentejo até aos 15 anos se ter mudado para Lisboa, para continuar a estudar. “Agora percebo que [o filme] funciona um talvez como a minha memória, da forma como me lembro daquele lugar, e por isso o filme também segue um pouco essa estrutura, essa narrativa da memória.”
Como um sonho, já dizia Jacques Rivette, que Marta Mateus traz para a conversa: “O Jacques Rivette dizia que todos os filmes são como um sonho e isso explica muito bem como o Cinema não tem que seguir um só discurso, ou só ‘Homem Aranha’ ou só Hitchcock, que tão contava histórias de uma forma extraordinária. A narrativa é muito importante, não estou a dizer que fuja disso, mas tenho muita dificuldade em explicar tudo.” Explicar tudo não será preciso, diz, sobretudo quando se tem a preocupação de não impôr uma retórica. “Aqui quis fugir dessa imposição de estar sempre a apontar um caminho.”
O resto será apenas a decisão de aceitar partir por este caminho com estas crianças que “ao longo do percurso vão encontrando estas pessoas que não se percebe bem se são do passado ou do presente”, que “vão descobrindo uma história que faz parte daquela paisagem e que está naquela paisagem”. E isto vai-nos contando Marta Mateus num filme que – voltamos às memórias – se abre da mesma maneira que um álbum.
“Não há grandes movimentos de câmara neste filme, mas eu não mexo muito a câmara também porque não sei mexer”, sorri Marta Mateus, a lembrar-nos como tudo começou pela Fotografia. “Agora gostava de começar a obrigar-me a isso, a experimentar mais, mas aqui tinha tantas coisas com que me preocupar que de facto o melhor era ver aquilo assim.” O movimento, o que houver a acontecer, acontece em cada plano, e Marta Mateus encontra outra liberdade aí. “Se por um lado isto pode ser apontado como uma rigidez do meu olhar, também o que parece uma fluência dessa linguagem, como a câmara sempre em movimento, pode condicionar e criar uma retórica da qual eu quis também fugir. Cada movimento de câmara, para mim, faz parte da construção da história que estamos a partilhar, acompanha intimamente essa narrativa.”
“Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, “Coelho Mau”, de Carlos Conceição, e “Farpões Baldios”, de Marta Mateus, estão em sala no Cinema Ideal, em Lisboa, e no UCI Arrábida, no Porto, na sessão “3 Novas Curtas Portuguesas”
Farpões Baldios: O filme de estreia de Marta Mateus na realização, “Farpões Baldios” foi rodado na zona de Estremoz, no Alentejo, com um elenco inteiramente composto por não-atores: trabalhadores rurais que a realizadora conhecia desde a infância, a que se juntaram outros, e ainda um grupo de crianças. Estreado em maio na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, venceu depois em Vila do Conde o Grande Prémio da competição internacional.