Ouvindo o discurso sobre o estado da União proferido por Juncker, ficamos com a impressão de que o presidente da Comissão acredita no futuro como continuação do presente.
E acredita no seu próprio futuro. Tendo anunciado há muito que não se recandidatará a um segundo mandato, anunciou na quarta-feira a ideia de fundir o cargo por si exercido com o de presidente do Conselho Europeu. Tal proposta foi entendida como um acto de voluntarismo para permitir a Juncker fazer um segundo mandato sem deixar de cumprir a promessa feita. Seria titular de um cargo novo, presidindo a duas estruturas, uma mais intergovernamental (o Secretariado-Geral do Conselho) e outra mais federal (a Comissão Europeia). O primeiro-ministro holandês, que também tem uma ideia sobre quem deverá ser o sucessor de Donald Tusk, apressou-se, com a elegância a que os membros do seu governo nos têm habituado em matéria de comentários dirigidos aos vizinhos do sul, a criticar em Juncker o excesso “de visões”.
Agora que por Washington parece continuar perdida a chave do hospício, não deixa de ser curioso observar o afã com que a UE procura emular a fórmula resultante do milagre de Filadélfia: um discurso sobre o estado da União, um presidente, por sinal não eleito, que juntaria Comissão e Estados-membros, comparações com o crescimento económico (a UE teria crescido mais do que os EUA) e com a aceitação de refugiados (a vitória moral depois da vitória “económica”…).
Ouvindo Juncker, acreditamos na nota marinheira do discurso: “A UE tem o vento pela popa.” Mas em que direcção navega? Procurando ir ao encontro das preocupações dos europeus, referiu as novas propostas legislativas, a apresentar até Maio de 2018, concedendo-se, até às eleições para o Parlamento Europeu em Maio de 2019, um ano sabático para as negociar. Uma Procuradoria Europeia (que ainda não se ergueu) para perseguir o terrorismo transfronteiriço (ideia curiosa numa Europa sem fronteiras, mas que diz muito do papel dos Estados em matéria penal). O regresso às cláusulas-passerelle para passar da unanimidade à maioria absoluta, com destaque para a fiscalidade e, nesta, para a fiscalidade das empresas (a competitividade fiscal em que o Luxemburgo se esmerou). A celebração do Brexit, anunciando para o final de Março de 2019 um Conselho Europeu em Sibiu, durante a futura presidência romena do Conselho da UE (a jeito de segunda renovação dos votos de União, como se fez em Roma a seguir ao referendo do Brexit).
Por Portugal, as atenções centraram–se no acessório, no facto de Viana do Castelo ter sido destronada por Vigo nos vês até Varna. Teria sido mais importante constatar que o discurso de Juncker, quando aborda o tema da solidariedade na UE, só dá exemplos a leste, o que não augura nada de bom para a negociação das novas perspectivas financeiras. E o apelo a contribuições para o Fundo Fiduciário para África também não traz boas notícias para Lisboa, que tem capacidade para gerir projectos em África e não para aumentar as suas contribuições. Mais promissora foi a defesa de um ministro da UE para a Economia e Finanças, ainda que acompanhada de várias negas a Macron a propósito do parlamento do euro ou do orçamento homónimo. A proposta mais original traduziu-se num mecanismo de avaliação do investimento estrangeiro feito por entidades estatais não europeias em infra-estruturas da UE, com destaque para a energia. Pequim terá ficado com as orelhas a arder, mas não deve ter perdido o sono, adivinhando mais um tigre de papel.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990