«Ainda ontem nos tivemos a contar e somos 25», conta Ana, que veio de fora para ajudar Dornes a ganhar mais um habitante. Esta lisboeta fugiu à corrente dos que foram abandonando o interior do país e foi ela que decidiu assumir o campo como casa. «Há nove anos vim cá de férias e fiquei encantada». De tal forma que, sem dificuldade, deixou a capital para rumar a esta aldeia ribeirinha onde, acredita, «a vida é mais consciente».
Contas por alto dão 25, numa terra que, graças à emigração e aos que não resistem a uns mergulhos no Zêzere, vê a população triplicar nos meses de Verão. «Estou mortinha que se vão embora», admite Anastácia, para quem o sossego é sagrado. Apanhámo-la de ramos de flores na mão e passo lento pela beira da estrada. Vai todos os dias arranjar a capela de Santo António, uma das atividades que, aos 77 anos, a ajuda a ocupar o dia. «Tenho ensaio do coro, ajudo as minhas vizinhas que já não podem estar sozinhas. Ui, não me falta o que fazer», admite, mesmo que para umas simples compras de supermercado seja obrigada a uma viagem de treze quilómetros até Ferreira do Zêzere.
Mas tudo se remedeia, como ouvimos várias vezes dizer durante o dia que passamos numa aldeia que só para para pensar na sua pequenez quando questionada pelos olhos da grande cidade. Olhos esses que não resistem a fotografar – como se de uma excentricidade se tratasse – a placa que anuncia o sistema de transportes que liga as redondezas.
Os autocarros deixaram de funcionar no ano passado e foram substituídos por um serviço de táxis com preço fixo. «É uma maravilha», garante Anastácia, que volta e meia liga a marcar para o dia seguinte, como é exigido, sabendo que de Dornes a Ferreira nunca paga mais que 2,10 euros. «Isto foi ideia da câmara e cheira-me que foi já com o olhinho na eleições», admite.
Aqui pouco se fala de política e o único resquício de autárquicas vê-se pelos cartazes à entrada da aldeia, cujo atual presidente, do PSD, apresenta como slogan «Uma equipa com provas dadas». Anastácia e os poucos que se refugiam do calor no interior do único restaurante aberto em Dornes ainda não tiveram a honra de receber a campanha porta dentro. «Isso de virem cá prometer isto e aquilo já não acontece, nem uma caneta nos dão», ouve-se de uma voz baixa, mas que não deixa de querer tomar posição. «Sabe o que é?», arremata Anastácia, «somos tão pouquinhos, que os nossos votos já nem interessam».
Apesar de atualmente ser aldeia, Dornes já foi sede de concelho e se recorrermos à boa e velha Wikipédia, ficamos a saber que, nessa altura, contando com todas as freguesias, chegava aos 2287 habitantes. «E veja lá que agora, até o nome nos tiraram», lembra Anastácia, isto porque, em 2013, no âmbito da reforma administrativa, Dornes e a vizinha Paio Mendes deixaram de existir enquanto freguesias, passando a ser uma só, com um novo nome: Nossa Senhora do Pranto. «Tiram-nos tudo e ainda querem que a gente vá votar? Olhe que não sei se ponho lá os pés», ouve-se da mesma voz baixa, sem nome, mas que conta com o apoio dos que no café sabem que dia 1 de outubro terão, com certeza, algo mais importante para fazer do que votar.
Aldeia-maravilha
Desde junho, passaram pelo posto de turismo 1500 pessoas, um número que enche o povo de orgulho, considerando que o verão foi de incêndios, o que tornou a região centro menos atrativa. Para compensar, Dornes foi recentemente eleita uma das sete aldeias maravilha de Portugal, o que deixa antever que mais gente partirá à descoberta desta relíquia à beira rio.
«Eu já sabia que isto era lindo, que a gente ama mais isto que sei lá o quê», diz Anastácia de mãos no peito, «mas ver a nossa terra na televisão, com aquelas fotografias tiradas do céu, que orgulho tamanho».
Todos acreditam que Dornes vai crescer com este reconhecimento, mas são muitos os que já sofrem com estas dores de crescimento. Ana, que prefere os meses calmos de inverno, ao verão feito de visitas de quem vem de fora, teme que lhe seja tirado o sossego que a fez mudar da cidade para o campo. «Aqui leio muito mais, até porque nem tenho televisão, tenho tempo para meditar, para refletir e posso escolher o que fazer com o meu dia», refere, atirando um «nem pensar» quando a confrontamos com a hipótese de voltar para Lisboa. Nem mesmo depois de perceber que, enquanto vegan, escolheu viver na capital nacional do ovo, na terra do peixe de rio e onde as pessoas vão de propósito para comer leitão.
«Já consigo comprar tofu e seitan em Ferreira do Zêzere e, cá, quando como fora safo-me com uma sopa ou uma salada», conta, admitindo que está numa tentativa de evangelizar a dona do único restaurante atualmente aberto, a quem já ofereceu um livro de cozinha vegetariana.
Mas antes de entrar, a sensação é de que Elvira Carvalho ainda não deve ter tido tempo para folhear o manual. O prato do dia do “Fonte de Cima” é peixe frito do rio com migas ou frango estufado com batatas fritas. Mas desenganem-se. «Tenho aqui uns rissóis verdes que são uma maravilha», e aponta para a travessa onde expõe a sua mais recente invenção, apta para vegetarianos. «Mas isso nunca foi problema», conta, habituada a ter que arranhar várias línguas para satisfazer os estrangeiros que por cá passam, «há sempre as migas que são boas e acabam por dar para eles: é só pão, água, azeite, alho e louro».
Na cozinha de Elvira são poucos os que entram, mas cá fora é a filha Joana, de vinte anos, que se mexe com a velocidade e ligeireza a que obriga um dia de verão por estas bandas, quando a hora de almoço e de jantar quase que se tocam. É exatamente dos horários que a obrigam a entrar ao serviço às 10h para sair só à meia-noite, «com um intervalozinho pelo meio que dá tempo para um mergulho no rio», que Joana vai ter menos saudades. Este domingo vai saber para que universidade vai estudar. «A minha primeira opção é Coimbra, espero que seja para lá», diz, com a ânsia de quem espera há anos pelo momento de deixar de ter de apanhar um autocarro que demora 45 minutos até a deixar na escola ou ter que conduzir durante uma hora até Torres Novas para ir ao cinema.
Mesmo que a contar as horas até ao momento em que as colocações são postas online, não esconde uns olhos que se enchem de água ao pensar no momento em que terá de sair. «Oh, eu até gosto disto», confessa, disfarçando como pode o embaraço.
Com a saída de Joana, Dornes perde a sua habitante mais jovem, mas Anastácia, que não arreda pé das conversas, chega-se à frente. «Mas não por muito tempo, que o meu filhinho vai voltar e traz com ele a filha de um mês. Já viu a alegria para esta terra?».
Viver num postal
Crianças é coisa que Casal Ascenso Antunes não vê já lá vão várias décadas. Neste lugar, a dois quilómetros do centro de Dornes, vive apenas um casal – a fazer jus ao nome da terra –, num sítio onde já viveram nove. «Uns morreram, outros foram embora. Olhe, ficamos nós», diz Maria Bernardina, de 84 anos, a quem não parece importar o facto de, durante vários dias, ter apenas o marido Jaime, de 87, como companhia. «Temos sempre assunto», assegura Jaime. E quando ele falta, entretêm-se com a horta e com o ‘Apanha se Puderes’, «aquele da Cristina Ferreira», uma espécie de religião seguida todos os fins de tarde.
Dali só saem ao domingo para ir à missa a Dornes, ou a Ferreira quando têm alguma consulta. Já vieram a Lisboa, mas só de passagem. «Que confusão que aquilo era. Prefiro esta vida de cá», garante Jaime.
É nesta dicotomia entre cidade e campo, entre uma Lisboa de mais de 500 mil habitantes e um lugar onde vivem cinco pessoas que Manuel Conceição passa os seus dias.
Apesar de viver na capital, agora que está reformado foge sempre que pode para Peralfaia, um lugar de Dornes, onde ficaria a viver «se pudesse», mas não sempre. «Assusta-me ver que cada vez que cá venho há menos uma pessoa. Qualquer dia isto acaba e eu apanho a aldeia fechada», admite.
Nas temporadas de cidade, sente falta das vinhas, das couves, «e desta casinha que fui eu que construi», conta. Mas em Peralfaia, chateia-o ter que andar quilómetros para ir ao supermercado e, pior que tudo, não ter internet para atualizar o Facebook e ver vídeos no YouTube. É lá que Manuel se vai atualizando das novas técnicas agrícolas. «Fui lá ver como se podavam os kiwis e, olhe para isto, nunca tive tanta fruta como este ano».
Aliás, fruta é coisa que não falta em nenhuma das casas às quais fomos bater à porta. Desta vez viemos interromper os trabalhos de apanha de figos num jardim que se apresenta como o único ponto com vida em quilómetros de estrada queimada.
Num surpreendente sotaque de País de Gales, Leightor Morris explica que há quatro anos trocou o Reino Unido pelo Portugal profundo, onde não tem ninguém com quem falar, mas também não tem tempo para vícios. «Lá andava um bocado perdido com o álcool e cá, só vivo a café», explica, nem que para isso tenha que fazer uns bons quilómetros por um expresso.
Não o incomoda a solidão, nem o isolamento. «Aqui sou só eu e as árvores. É como se vivesse num postal».
Aqui é que se está bem. Ou não
Não vale a pena mais quilómetros, mais perguntas ou o espicaçar típico de quem quer ter repostas. Aqui não há quem diga mal da terra e quando se fala de defender a aldeia-maravilha, é inevitável voltar a Anastácia.
Fala de boca cheia do sítio onde nasceu e prefere nem se lembrar dos anos que viveu em Lisboa, «num quarto andar sem elevador, Deus me livre». No início, chorava «como uma madalena» todos os dias. Não se habituava à falta de convívio com os vizinhos, «que não são como os de cá, fecham a porta e acabou».
Voltou para Dornes mal o marido morreu e de cá não pensa sair. Só voltou a Lisboa uma vez, mais do que suficiente para perceber que não pertence à grande cidade. «Os prédios parece que se enfaixavam na cabeça da gente», descreve. Abre os braços o mais que pode e aponta para a paisagem que espreita lá de fora, «Aqui abro a janela de minha casa e é isto que vejo. Quer melhor?»
O problema é que há quem queira, para desgosto dos poucos que ainda restam.
Maria de Lurdes passa os dias a fazer limpezas e jardinagem. «Ao todo, trabalho em 15 casas», conta. Fá-lo por dinheiro, claro, mas também para manter a cabeça ocupada e longe de pensamentos negativos que já a levaram até ao inevitável caminho dos antidepressivos.
Pousa as ferramentas que usava para arranjar as rosas de uma das casas de Rio Fundeiro e começa a contar a história de uma vida. Fica o aviso à navegação que orientar o GPS para estes lados: nenhuma conversa é de circunstância. Aqui para-se para falar, com tempo e com a vontade de quem, habitualmente, tem poucos interlocutores.
«Não tive pai nem mãe», começa por explicar Lurdes. Entregue a um casal com algumas posses, sempre foi vista como força de trabalho, mais do que como filha. «Foi muita porrada», lembra. Porém, o pior aconteceu quando a obrigaram a casar com quem não queria. «Divorciei-me um mês e seis dias depois. Está a imaginar o que era um divórcio nesta terra há 40 anos?».
Lurdes foi falada nas esquinas, rejeitada por todos e, ainda hoje, aos 60 anos, não conta com a companhia de nenhum dos sete vizinhos que tem em Vale Serrão, o lugar que está prestes a ser a sua segunda casa. «O psicólogo disse-me que devia mudar de ambiente e eu decidi que vou viver para Tomar», explica, com a falta de convicção que faz adivinhar um «mas», que chega logo a seguir. «Mas olhe que não é brincadeira nenhuma. Ainda por cima as pessoas metem-me medo. Dizem-me ‘galinha do campo não quer capoeira’, mas eu não vou para a capoeira, vou viver a minha vida».