Celebrar o passado pela edificação de estátuas não garante um lugar no futuro a não ser aos pombos. A relação estreita entre pombos e estátuas faz parte do legado de Lenine que, premonitoriamente, reduziu, em vida, a utilidade das estátuas a poleiro para pombos. Nesta como noutras matérias, o leninismo foi desmentido pela história. Caído o Muro de Berlim, os vindouros não confiaram nos pombos para celebrarem a glória leninista e têm vindo afanosamente a remover, discreta e nocturnamente, ou ruidosa e televisivamente, os milhares de estátuas de Lenine espalhadas pelo leste europeu. Há de tudo, desde a destruição e fundição dos metais até à organização de jardins de estátuas soviéticas em locais ermos, longe dos espaços nobres das cidades. A melhor homenagem política a Lavoisier encontrei-a em Odessa, onde uma das estátuas de Lenine foi transformada em estátua de Darth Vader.
A intenção de celebrar o herói e de o imortalizar sob a forma de estátua é, evidentemente, um acto de interpretação da História, uma construção de ideias. E, como tal, está sujeita a reinterpretações. As estátuas, como as rotundas dos autarcas lusitanos, tendem a ocupar o espaço público. E a ocupação do espaço público rege-se por critérios políticos, democráticos, pelo menos no Ocidente. Fora das situações de classificação como património cultural a ser protegido ao abrigo da lei, a maior parte das estátuas que se encontram no espaço público estão sujeitas às decisões políticas sobre a ocupação desse espaço.
Não foi só a Europa de leste que acordou um belo dia com vontade de remover a estatuária que glorificava os expoentes do comunismo real. A esmagadora maioria da estatuária do Estado Novo nas ex-colónias portuguesas celebrando a “gesta dos Descobrimentos” foi desmontada e arrumada em locais discretos depois da independência. Mesmo em Portugal foram removidas as estátuas de algumas das glórias do salazarismo e arrumadas em depósitos municipais.
Poucas estátuas são contemporâneas dos retratados. A maioria da estatuária celebratória é muito posterior aos factos a que se refere. A estatuária, como a história oficial, é obra dos vencedores ou, pelo menos, dos que se assumem como tal num determinado momento histórico. E por essa razão não há, por enquanto e por Portugal, uma estátua dedicada aos povos indígenas ou aos escravos, personagens que também fazem parte da história.
Por estes dias, a Kulturkampf que lavra pelos EUA chegou, para mal dos pombos, às estátuas. A utilização de símbolos simplifica a comunicação e simplifica sobremaneira a provocação, apelando a reacções primárias para mobilizar alguns dos fantasmas da psique americana. As estátuas em locais públicos são um símbolo de fácil manipulação para promover o conflito identitário, reduzindo o diálogo político ao conflito entre “nós” e “eles”. Trump tem dado provas de reduzida sofisticação na abordagem a problemas complexos. Mas é perigosamente talentoso na simplificação do debate político. E esse talento já o levou à Casa Branca.
A angústia da estátua perante a passagem do tempo foi resolvida pelos romanos com o envio para as diversas províncias do império de estátuas sem cabeça. As cabeças eram expedidas em momento posterior, de acordo com a realidade política do momento, garantindo a poupança, a actualidade da homenagem e o contentamento do personagem que, em Roma, tomasse as rédeas do poder.
Desaparecido o Império Romano, deveremos preferir os homens e as mulheres-estátua às estátuas de homens e mulheres?
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990