Nas gavetas não se guardam só cuecas


Há quem confunda o “arrumar as emoções numa gaveta” com estar morto por dentro e fingir-se vivo por fora. Mas são duas coisas bastante diferentes


Estávamos numa roda de amigos e falávamos sobre a capacidade abundantemente feminina de, quando necessário, arrumar as emoções numa gaveta durante um par de horas (em prol da amiga que faz anos e que merece a nossa alegria ou do jantar do Dia do Pai). O Tiago dizia que achava incrível e estranho que eu o fizesse. E eu dizia-lhe que, para mim, não existe qualquer grau de dificuldade nessa tarefa de arrumação. Posso ter o quarto num caos mas, se for preciso, arrumo uma dor durante uma festividade inteira e vivo-a intensamente como se não existisse dor alguma. Na verdade, durante o momento em que preciso que ela não exista, não existe mesmo.

– Virias a uma festa se estivesses chateada com o Tiago?

– Provavelmente. Se tivesse uns sapatos novos.

Não são só as mulheres que fazem este tipo de ginástica – o Pedro era pró neste exercício – mas, talvez por encarnarmos tantas peles, tenhamos uma habilidade extra para a coisa. Há quem ache (claro) que brincar com as emoções mudando-as de sítio, de hora, de foco é deixar de ser espontâneo ou até manipulador, mas acredito que seja exatamente o contrário. Admiro quem consiga estar a cem por cento em determinado momento, sem outra qualquer distração ou preocupação. Sou fã de quem sabe usufruir do que tem porque nadinha pode fazer em relação ao que não tem.

Há quem confunda o “arrumar as emoções numa gaveta” com o ato de “engolir sapos”, que é como quem diz estar morto por dentro e fingir-se vivo por fora. São duas coisas bastante diferentes. Uma coisa é ausentarmo-nos da dor de forma livre e total, outra é limparmos as lágrimas e engolir em seco, pondo um sorriso falso na cara em detrimento dos outros, aparentando o que não somos e o que não sentimos.

Arrumar emoções é bem diferente de fingir e fazer cara bonita para a fotografia, porque hoje é dia de festa e parece mal. Ou é Natal. Ser capaz de fazer pausa a um pensamento invasivo e de estancar a ferida porque agora é preciso viver o momento é um ato mágico – mas tem de ser feito sem dor, sem custo, sem esforço, sem ressabiamento, sem mentira.

Tenho-o feito muitas vezes. Umas, no dia-a-dia e em coisas bem triviais, como quando o carro se avariou mas isso não nos impediu de rirmos nesse dia porque “já não há nada que se possa fazer”. Outras vezes, em momentos gigantes que me marcaram para sempre.

Lembro-me que os meus tios festejavam os seus 50 anos de casados. Era uma festa simples na igreja e, depois, seguir-se-ia um normal almoço de família. “Nada de especial” para alguns; para mim, totalmente imperdível. O meu Careca Power estava, nesta altura, muito doente e eu já não convivia com a minha família há muito tempo, muito menos numa comemoração. E é preciso comemorar, não é? É preciso rir com os primos, tirar fotografias em grupo, comer coisas boas em excesso, ficar sentado à mesa até às quatro horas da tarde. É preciso viver, não é?

Falei-lhe da festa. Ele disse-me logo para ir. “Aproveita e traz roupa lavada. A sério, precisas.” Rimos os dois. Agradeci-lhe a bondade de me convidar a sair. Agradeci-lhe a extrema generosidade de ficar sem mim durante aquele dia, sabendo que lhe faria falta para o desenho da curva do sorriso. Deixei-o a descansar, absolutamente bem acompanhado, e segui.

Fui a pessoa mais feliz daquele almoço. Ri, brinquei, chorei, dancei, saltei. Fiz tudo como se a vida me corresse de feição. E, garanto-te, durante aquele almoço, corria. Fui completamente feliz. Porque estava. Desliguei e, quando reiniciei, estava fresca e airosa. E trazia roupa lavada comigo – o que é sempre bonito de se ver. E de se cheirar.

Vou sempre arrumar as minhas tretas, as minhas falhas, os meus problemas em gavetas. E as dores maiores? Em gavetões. E farei isso sempre que a vida me convidar a respirar. Porque é preciso. Porque nas gavetas não se guardam só cuecas.

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