Num artigo – do mesmo autor que descobriu a recente violenta expulsão de milhares de habitantes da Baixa lisboeta (ausentes há décadas), vítimas da gentrificação, ou afidalgamento –onde nunca, a não ser por associação de ideias, se refere que estamos perante um caso de incumprimento reiterado de um contrato civil celebrado entre dois particulares e de onde decorrem recíprocas obrigações, e no qual o despejado está em falta, o jornal i deu à estampa, esta semana que passou, um exercício notável de alienação mistificadora e de estratégica desinformação sobre o actual regime do despejo e suas alterações.
A primeira nota que deixaria sobre as inverdades publicadas é relativamente autoexplicativa.
Refere o autor, enquanto perora sobre o suplício de um anónimo (aparentemente gratuito e que se abateu sobre o inquilino incumpridor) – se se pode ler isso nas suas palavras –, que as associações de senhorios sempre invocam o congelamento das rendas para defenderem a melhoria da sua posição no equilíbrio contratual, o que sugere (sem afirmar) já não existir por causa das sucessivas alterações às leis do arrendamento que vêm tendo lugar desde os anos 90.
E refere como exemplo da reposição da justiça como única alteração de que fala a este processo, nas recentes alterações ao quadro legislativo, o facto de a “tolerância ao incumprimento” ter passado de dois para três meses, lamentando não se ter feito mais.
E esquece, ou melhor, omite, que o principal desta alteração legislativa, muito mais que alterar a tolerância do incumprimento, ou seja, o intervalo temporal a partir do qual o senhorio já não será obrigado a tolerar o reiterado incumprimento do inquilino, visou antes, e muito mais, prorrogar por mais um período igual de cinco anos (ou seja, para um total de 10) o prazo para a passagem dos contratos de arrendamento antigos (os tais que já não existem) para o regime da nova lei.
Estes contratos, em cuja defesa a “maioria de esquerda” veio urgentemente prorrogar os prazos apontados na denominada Lei Cristas, são exactamente os contratos que perpetuam o tal vinculismo arrendatício que o autor sugere já não existir e que seria a tal bandeira arcaica das lutas dos senhorios. O que nos permite perguntar: sendo assim, qual a urgência desta intervenção?
Naquela falta de rigor de quem se apressa a reescrever a História e negar factos, para poder descobrir em breve que aquela é cíclica, o autor que vimos acompanhando permite-se mais algumas alucinações ideológicas.
Desde logo, muito mais à esquerda da verdade que do impossível, o autor refere também que “o que Assunção Cristas produziu no campo do arrendamento foi um quadro jurídico de radical desequilíbrio entre proprietário e inquilino em favor do primeiro, com instrumentos desfasados do que a sociedade entende como moralmente aceitável”.
Parece da espuma dos tempos a constatação de que alguns indivíduos não têm relações espetaculares com a verdade e o rigor, e este é um dos casos.
É bem verdade que quem hoje ouça a maioria de esquerda que apoia o governo notará uma atitude de subalternidade e subserviência que leva os antigos arautos da ética à condição de sabujos do regime e, porventura, branqueadores da sua história e da última legislatura do PS, que transitou em parte para este elenco governativo.
Vejamos então se é aqui o caso do cronista que vimos acompanhando, que acusa Cristas de ter criado um quadro jurídico de desequilíbrio radical entre proprietário e inquilino.
A História, por muito que se tente, ainda não está ao ponto de ser reescrita e a verdade é que o cronista suprime dados relevantes que não desconhece.
Porventura afirmará em breve que, afinal, a troika nunca foi chamada, o resgate foi uma falácia dos neoliberais e o PS nunca negociou um memorando de entendimento com um pacote de medidas.
E, por isso, aqui simplesmente omite que foi o governo PS quem definiu o conteúdo da Lei Cristas quando na referida negociação com a troika havia assumido o compromisso internacional de “6.1. O Governo apresentará medidas para alterar a nova Lei do Arrendamento Urbano, a Lei n.º 6/2006, a fim de garantir obrigações e direitos equilibrados de senhorios e inquilinos, tendo em conta os grupos mais vulneráveis. (…) Em particular, o plano de reforma introduzirá medidas destinadas a: i) ampliar as condições ao abrigo das quais pode ser efectuada a renegociação de arrendamentos habitacionais sem prazo, incluindo a limitação da possibilidade de transmissão do contrato para familiares em primeiro grau; ii) introduzir um enquadramento para aumentar o acesso das famílias à habitação, eliminando gradualmente os mecanismos de controlo de rendas, tendo em conta os grupos mais vulneráveis; iii) reduzir o pré-aviso de rescisão de arrendamento para os senhorios; iv) prever um procedimento de despejo extrajudicial por violação de contrato, com o objectivo de encurtar o prazo de despejo para três meses; e v) reforçar a utilização dos processos extrajudiciais existentes para acções de partilha de imóveis herdados”.
Não se estranha, atento o histórico e o rigor das análises deste autor nesta área, a sua divergência com a leitura que o PS e a troika tiveram de que persistiam – mesmo depois da reforma de 2006, da maioria PS – alterações à lei para garantir obrigações e direitos de inquilinos equilibrados. A verdade, porém, é que a obrigação de legislar vinha da legislatura anterior, que as esquerdas se lembram de esquecer que houve, mas dá mais jeito pensar que o país só tem como passado Passos Coelho e presente e futuro na troika das esquerdas.
O cúmulo, porém, da desonestidade intelectual de Tiago Mota Saraiva (até se tivermos em conta a Lei Cristas como aprovada na sequência daquele trecho do memorando de entendimento que esta não negociou) é que estas alterações que o autor refere e que saúda como boas serviram, no essencial, para prorrogar o prazo do regime transitório que impediu que entrasse em vigor o previsto fundo de apoio que, passado este período inicial de cinco anos, instituiria o mecanismo público de apoio aos inquilinos efectivamente necessitados, o que contribuiria para aligeirar as entorses de funcionamento do mercado e protegeria inquilinos e senhorios, dinamizando o mercado do arrendamento, entorses estas que esta lei vem perpetuar por mais anos e cegamente.
Isto eternizará um regime de rendas iníquo, mesmo para quem não precisa, e retirará aos futuros novos inquilinos a hipótese de acederem a locados que gozarão de protecção por mais cinco anos, e que os demais inquilinos, incluindo jovens, não têm, e de que alguns dos inquilinos mais velhos também não precisam.
Isto sim, merece denúncia pública!
Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt
Escreve à quinta-feira, sem adopção
das regras do acordo ortográfico de 1990