A cobertura de tijolo vermelho, as cúpulas azuis em forma de bolbo que parecem furtadas do palácio do Aladino e as janelas em forma de ferradura são postal amplamente reconhecido da cidade de Lisboa. Simpatias taurinas ou desaprovação profunda por estas lides à parte, a verdade é que a Praça do Campo Pequeno é um dos símbolos da cidade e um dos maiores e (agora) mais bem conservados exemplares de arquitetura civil de inspiração neoárabe do país.
A praça, praticamente votada ao abandono nos anos 90, esteve encerrada ao público entre 2000 e 2006, ano em que reabriu com cara polida e outras cartas no baralho: há 11 anos que o local é também usado como sala de espetáculos multiusos, há restaurantes e bares na parte exterior do edifício devidamente acompanhados de esplanadas, um museu (que abriu portas em 2015), um centro comercial apetrechado de cinemas e até um parque de estacionamento com 1250 lugares. Tudo com acesso direto ao metro.
Na semana em que o edifício cumpre uns já respeitosos 125 anos, voltamos atrás no tempo à data em que ali, nos arrabaldes de uma Lisboa que se finava no que é hoje o Parque Eduardo Sétimo e em que campos baldios enchiam o espaço, se jogou pela primeira vez à bola.
O verdadeiro pelado
Vamos então até essa Lisboa de outras eras, até uma altura em que o nome das Avenidas Novas significava o que prometia – e em que as ruas recém-inauguradas da zona norte da cidade, repletas de edifícios pincelados de varandinhas de ferro forjado, seguiam a retórica da também Arte Nova. Simplifiquemos as contas, estamos na viragem do século XIX para o XX. Mais propriamente a 22 de janeiro de 1889, dia em que decorre naqueles terrenos, junto ao Palácio das Galveias [antiga casa de campo dos malfadados Távoras e atual biblioteca municipal], o primeiro jogo organizado de football no país.
A partida, que opôs uma equipa de nobres e burgueses portugueses a uma outra de “estrangeiros”, foi organizada pelos bisnetos do fundador da Vista Alegre, Guilherme, Eduardo e Frederico Pinto Basto, que estudavam em Inglaterra, no St. George College, de onde trouxeram o que viria a ser o desporto preferido dos portugueses. “O Campo Pequeno estava todo muito mal tratado, cheio de pedras e de ervas, mas havia uma faixa entre a atual praça e o palácio Galveias, mais aproveitável, onde se delimitou um rectângulo, não muito grande que serviu para o jogo. Eram os próprios entusiastas que iam fazendo a limpeza das pedras para poupar mais as botas e os pés…”[sic], escreveu a imprensa, afirmando que a curiosidade tinha levado muitos lisboetas assistir à partida.
A nova praça
Enquanto a bola corria no pelado – uma figura de estilo –, a Casa Pia, que tinha o monopólio da organização e das estruturas das concorridas touradas na cidade, procurava uma solução para um problema que tinha em mãos desde 1888: a antiga praça de touros do Campo de Sant’Anna estava inutilizada. Ou se renovava o espaço ou se partia para algo de raiz. Tomou-se a segunda via, e ainda se pensou em Queluz. Mas, em 1889, a câmara cede à Casa Pia “seis mil metros quadrados de terreno”, ali, no Campo Pequeno.
Com um caderno de esboços herdeiro da arquitetura romântica, coube ao arquiteto António José Dias da Silva projetar o grande tauródromo. As obras, dirigidas pelo engenheiro Ressano Garcia, começaram nos inícios de 1891. Curiosidade: a construção ficou por 161.200$00 e contou com contribuições de um grupo de acionistas, entre os quais a própria família Pinto Basto, que ali jogara à bola.
Dias da Silva não poupou na dimensão nem no simbolismo na hora de erigir a praça, pensada para ser a casa mãe da tauromaquia. No exterior, a fachada forrada a maciço tijolo vermelho, uma solução pouco usual em Portugal, chega aos 18 metros de altura. A praça abriu portas no dia 18 de agosto de 1892, faz 125 anos precisos já esta sexta-feira. Para o dia da inauguração, foi organizada uma tourada de gala que seguiu todos os preceitos da pompa e o protocolo da circunstância e que arrastou espetadores de todas as classes para uma Lisboa que já não era arrabalde mas que ainda estava a nascer.
No centro cultural casapiano, em Belém, pode, aliás, encontrar uma réplica desta primeira vida da praça, que soltou o último suspiro em 2000. Sopro retomado em 2006, com a segunda vida que hoje conhecemos. E, feitas as contas, o tijolo vermelho já viu, ainda que de relance, três séculos. O futuro, como em tudo, dirá qual será o seu lugar na História.