João Carvalho. “Passámos o caminho das pedras para trazer Coura até aqui”

João Carvalho. “Passámos o caminho das pedras para trazer Coura até aqui”


A partir de hoje, Paredes de Coura volta a receber o festival que se fez já maior do que vila minhota. Pretexto para uma conversa com o diretor, João Carvalho, sobre as histórias que fizeram estes 25 anos


Longe no tempo está já aquele dia no verão de 1993 em que, ao verem a recém-inaugurada praia fluvial do Taboão pela primeira vez num concerto de fados de Coimbra, João Carvalho e um grupo de amigos tinham a ideia de fazer ali um concerto de qualquer coisa que lhes interessasse. “Quando?”, perguntou-lhe o presidente da câmara. “Para a semana”. E não foi numa semana mas foi em nove ou dez dias, recorda hoje João Carvalho, diretor desse encontro de amigos “amador e mal organizado” que se fez festival para durar 25 anos, sem interrupções, que foi a parte difícil. Porque anos difíceis também houve e foram vários, mas ao cabo de várias vidas, de todas as vidas, o Vodafone Paredes de Coura chega a 2017 com bolo de aniversário e com tudo numa edição em que cabem Future Islands, Car Seat Headrest, Ty Segall, Alex Cameron, Benjamin Clementine e outros que João Carvalho quer muito ver naquele cenário já mítico. Assim nos contou numa manhã de visita a Lisboa, entre a azáfama dos telefonemas em que se resolvem detalhes de última hora, que nada pode ficar ao acaso para mais uma edição de Vodafone Paredes de Coura.

Desde a última vez que falámos, no ano passado, os Cage The Elephant já arranjaram casa em Paredes de Coura?

[Risos] Havia essa frase dos Cage The Elephant, mas também do Seasick Steve, do Erland Oye dos Kings of Convenience, são três que me recordo de terem dito que gostavam de morar lá. Claro que isso é uma forma de serem simpáticos, mas demonstra o carinho que têm por Paredes de Coura. Normalmente as bandas ficam no Porto e depois têm pessoas que os trazem, mas o Erland Oye no segundo ano quis ficar em Paredes de Coura. Não tínhamos casas com grandes condições, as que tínhamos estavam ocupadas, e ele ficou num bairro social. Não tinha grandes condições mas ficou maravilhado. Coura tem essa vertente. É um festival de afetos. A população courense sabe receber muito bem e nós, a organização, também fazemos tudo para que as pessoas se sintam bem. Todos os anos temos a preocupação de melhorar e de acrescentar alguma coisa às infraestruturas, isto mesmo quando há estudos que dizem que está tudo bem. Está tudo bem mas pode ainda ficar melhor. O festival cresceu de uma forma quase poética, nasce sem qualquer fim mercantilista, precisamente em prol da amizade e da promoção do concelho e para que um grupo de amigos continue a ter pretextos para se encontrar. Depois disso houve edições muito boas, houve edições muito más.

Em termos financeiros?

Obviamente em termos financeiros, porque em termos musicais foram todas boas, e não foi segredo para ninguém. As pessoas foram sabendo que passámos o caminho das pedras para trazer o festival até aqui. Embora não tivéssemos chegado a ter uma reunião a dizer “vamos acabar com isto” tivemos muitas a dizer “temos que resolver esta situação porque isto assim é insustentável”. Houve anos de chuva, de intempérie, anos medonhos. Em 2004, não chovia assim há 99 anos.

Há 99?

Lembro-me da primeira página do “Público”, ao fim de 40 dias a chover torrencialmente numa edição em que um dos palcos desabou, precisamente aquele em que atuavam os LCD Soundsystem, que por isso passaram para o palco principal. E as pessoas tiveram essa consciência. Que passámos por muito e que nunca foi um festival feito com o objetivo do lucro. E isso uniu-nos. As pessoas vêm falar comigo na rua e não vêm para dizer “grande banda”, vêm dizer “Paredes de Coura, respect”, “Paredes de Coura é uma cena à parte”.

Sim, Paredes de Coura teve sempre isso, que agora temos também no Primavera Sound, entre uma série de festivais um pouco mais…

Não quero ser eu a dizer [risos]…

Impessoais?

Mais abrangentes, sim. O que têm estes é que são festivais de cumplicidade, em que se sente uma afinidade entre toda a gente, inclusive com as pessoas da organização. Há essa necessidade quase de o público nos transmitir o que sente com o festival, seja nas redes sociais ou pessoalmente. Promovemos sempre essa abertura.

E continua a ser um festival interessado em, a par das tendências, mostrar coisas novas também. 

Não é bem uma preocupação, gostamos de música, estamos sempre a ouvir música e a pensar “ah, estes ficavam bem em Paredes de Coura”. Os Beach House, por exemplo, da primeira vez que os vi pensei logo. Entretanto vieram ao Primavera Sound, no Porto, não tinha havido a hipótese de os levar a Paredes de Coura. Já os vi cinco ou seis vezes e estou com grandes expectativas para os ver naquele recinto. Tal como o Benjamin Clementine, que já vi e que acho que vai funcionar perfeitamente lá. Como os Future Islands. Isto para dizer que há bandas que vou vendo e que já estiveram cá mas que acho que ali funcionavam na perfeição. Agora, não é uma obrigação ter bandas novas.

Mas muitas estrearam-se cá no Paredes de Coura. Os LCD Soundsystem de que falavas ainda agora, por exemplo.

Sim, centenas. A entrevista dura quanto tempo? [risos] Os Queen of the Stone Age, os Yeah Yeah Yeahs, os Coldplay, que na altura tinham um álbum que se chamava “Yellow” e eram uma banda interessante dentro da pop britânica, mas depois agigantaram-se e estragaram-se.

A ponto de hoje isso soar estranho.

Em 2000. Temos que dizer que tocaram em Paredes de Coura em 2000 e com o álbum “Yellow”. Há bandas que no início de carreira são uma coisa e depois são outra. Mas [além deles], os LCD Soundsystem, os Flaming Lips, a M.I.A., os Sex Pistols… Tantos.

Como é que aconteceu isso dos Sex Pistols?

É tu olhares para a história da música, veres quem está no ativo ainda e quem é que faz sentido. Sex Pistols e Motorhead – dois nomes tão grandes que tinham escrito páginas tão importantes na história da música e que nunca tinham estado em Portugal – faziam sentido. Fizemos o convite, eles aceitaram, e ainda bem que aceitaram porque ajudaram também a escrever uma página importante do festival.

Falavas no espírito com que criaram o festival, há 25 anos. Como é que se consegue trazer a partir daí um festival até hoje, e um festival feito fora de Lisboa? O Sudoeste, por exemplo, tem hoje uma programação que não tem nada a ver com a que teve no passado.

Isto parece um slogan de esquerda, mas o Paredes de Coura é um festival de luta, um festival sobrevivente. Anos de tentação? Houve. Houve um ou outro ano em que cedemos um bocadinho. Não me orgulho dos Papa Roach ou dos Blink-182 ou dos Sum 41. Não me orgulho nada disso. 

Mas foram necessários?

Não foi bem [uma questão de] ser necessário. O festival tem 25 anos e passou por várias fases. Uma primeira connosco, os cerca de 12 fundadores, depois começa a crescer, a internacionalizar-se, fizemos várias parcerias e, sem querer ser deselegante, estamos sozinhos felizmente, e finalmente, há seis anos. A partir daí fizemos as coisas como bem queríamos, mas quando tens uma sociedade tem que haver algum tipo de cedência. E muito nós lutámos contra algumas das vontades vindas do outro lado. Sempre pusemos um travão e sempre dissemos não a algumas coisas, mas aqui e ali tem sempre que se fazer alguma cedência. Mas a verdade é o festival desde 2010 tem realmente um percurso imaculado, adoro todas as edições desde 2010. Finalmente fazemos as coisas à nossa maneira. Isto sem querer ser deselegante nem com o Luís Montez [Música no Coração] nem com o Álvaro Covões [Everything is New], que foram parceiros importantes para nós, como presumo que tenhamos sido importantes para eles.

E entretanto entrou a Vodafone.

Entrou em 2012. Em termos de patrocinadores o festival foi variando muito, nenhum queria manter-se muito tempo. Os custos para se ir para Paredes de Coura são grandes e hoje as coisas mudaram, finalmente, mas sempre houve aquele centralismo de quando não se faz em Lisboa fazer no Porto, quanto muito. A Vodafone teve realmente essa visão de pensar que isto é um festival que se faz em Paredes de Coura mas que podia ser em Lisboa, no Porto, em Londres, em Nova Iorque, e que era assim que o ia patrocinar e abraçar. Teve essa visão que até aí nenhum patrocinador tinha tido. E o festival sempre teve bom nome mas sempre lhe faltou um patrocinador sólido, que aparece precisamente na Vodafone, com um resultado é excelente para a Vodafone e para nós e que está à vista.

E queres regressar àquele dia de 1993 para recordar como é que tudo começou?

A história já foi inúmeras vezes contada mas conto mais uma vez: estávamos lá [na praia fluvial do Taboão] a ver um espetáculo que não tinha nada a ver com o estilo de música que ouvíamos na altura, um espetáculo de fados de Coimbra – hoje até ouço fado mas na altura não ouvia – e de repente fez-se luz. Era uma zona de mato, de vegetação densa, que de repente a câmara decidiu limpar. Estava lá um rio que não se via porque aquilo era um matagal, que a câmara limpou para fazer uma praia fluvial. E para inaugurar a praia, para a mostrar às pessoas, fizeram um concerto. Numa terra pequena onde nada acontece nós fomos espreitar e de repente nasceu a ideia. Fomos falar logo com o presidente da câmara, que estava lá com o vereador e disse imediatamente que achava muito boa ideia e perguntou quando é que queríamos fazer, eu disse “para a semana”. E não foi numa semana mas foi em nove ou dez dias que se fez a primeira edição do festival, a que seria um abuso chamar festival porque foi uma coisa muito mal organizada e amadora, mas que foi o que deu origem a tudo isto.