Música, pintura, física, literatura, todas as áreas têm exemplos de pessoas que, na altura em que viveram, não receberam o mérito devido pelo seu papel na evolução da sociedade. Alguns acabaram por receber uma distinção anos (ou séculos) mais tarde, mas outras continuaram desconhecidas do grande público. Aqui ficam alguns exemplos de génios cujos feitos não foram reconhecidos no tempo em que viveram.
Ana Comnena
O nome pode ser pouco comum, mas também pouco diz à maioria das pessoas. Ana Comnena foi uma princesa bizantina e também uma das primeiras e mais importantes historiadoras da altura.
O seu trabalho mais conhecido, ‘A Alexíada’, é uma das mais importantes crónicas sobre o reinado do seu pai, o imperador bizantino Aleixo I Comneno, e a Primeira Cruzada, um conjunto de ações bélicas, de inspiração religiosa, que tinha como objetivos ajudar os cristãos ortodoxos do leste e libertar Jerusalém e a Terra Santa dos muçulmanos. Nesta obra, existe um relato de várias batalhas, banhos de sangue e traições que ocorreram entre 1081 e 1107 – um testemunho raro, escrito na primeira pessoa, que oferece detalhes sobre um território ameaçado e as alianças feitas para o proteger.
O trabalho de Comnena foi ignorado na sua altura e durante os séculos que se seguiram não apenas por ser mulher, mas também por questões relacionadas com a sua família. Décadas após a sua morte, um historiador bizantino chamado Nicetas Coniates escreveu sobre o núcleo familiar de Aleixo I, impulsionando um rumor que corria na altura: a princesa Ana esteve por detrás de um plano de assassinato do seu irmão, com o objetivo de apoderar-se do trono. Coniates, que culpava Aleixo I pela queda de Constantinopla, baseou-se apenas em rumores para escrever este trecho da obra, mas, por alguma razão, este acabou por singrar e assentar na mente dos seus contemporâneos e futuras gerações.
Recentemente, os historiadores começaram a dar o devido crédito a Comnena e a reconsiderar as considerações feitas por Coniates.
Clara Schumann
Nascida em Leipzig a 13 de setembro de 1819, Clara foi uma pianista e compositora romântica alemã. Para muitos, era apenas a mulher do compositor Robert Schumann.
Em criança, Clara Wieck (nome de solteira) era já um prodígio, chegando mesmo a tocar em salas de espetáculos parisienses com apenas 11 anos. Foi com essa idade que conheceu Robert, nove anos mais velho – tinha apenas 18 anos quando aceitou o pedido de casamento do também excelente pianista. Clara esteve grávida dez vezes e teve oito filhos. O marido incentivava-a a compor, mas deixava bem claro que era o seu processo criativo que tinha prioridade. Mesmo assim, Clara continuou a compor e a tocar.
Em 1854, Robert tentou suicidar-se e foi internado num hospício. Clara estava proibida de o ver e apoiou-se em amigos como os compositores Felix Mendelssohn e Johannes Brahms, de quem se tornou particularmente próxima. Só voltou a ver o marido dias antes de este morrer, em 1856. Tinha 37 anos quando ficou viúva.
A partir dessa altura, Clara continuou a tocar, mas pouco compôs, dedicando grande parte do seu tempo à obra do falecido marido, recolhendo todas as peças compostas por Robert. Continuou a tocar e a dar aulas de piano quase até à data da sua morte, em 1896.
Benjamin Bradley
Não eram apenas as mulheres que eram esquecidas. O nome Benjamin Bradley pode dizer-lhe pouco (ou nada), mas é uma das figuras mais importantes da engenharia. Nascido da década de 1830, no estado do Maryland, Bradley era um escravo afro-americano cujo ‘proprietário’ não é conhecido. Sabe-se apenas que, quando era mais novo, trabalhava numa companhia de impressão e que, mais tarde, em face da sua aptidão para a engenharia mecânica, o seu ‘dono’ colocou-o a trabalhar no departamento de filosofias naturais e experimentais da academia naval de Annapolis, naquele estado norte-americano. Foi nesta academia que Bradley aprendeu a ler e a escrever.
Antes disso, Benjamin Bradley já tinha construído um modelo de um motor a vapor com duas peças de aço, um barril de pólvora e peltre. Já na academia, Bradley vendeu o modelo a um guarda da marinha – o engenho tinha potência suficiente para fazer mover um pequeno barco. O dinheiro arrecadado serviu para expandir a sua investigação e criar um motor maior e mais potente.
Bradley acabou por conseguir criar um engenho capaz de, pela primeira vez, impulsionar um sloop-of-war, um navio de guerra que transportava armas. Assim, o motor criado Benjamin foi o primeiro a conseguir fazer mover uma embarcação destas.
Por ser escravo, e de acordo com as leis implementadas nos Estados Unidos na altura, Benjamin Bradley estava impedido de registar uma patente. Mas nem tudo foi mau nesta história: vendeu o engenho por bom dinheiro e, com parte dessa quantia, conseguiu comprar a sua liberdade. A data da sua morte não é conhecida.
Esther Lederberg
Esther Lederberg, uma microbióloga norte-americana e pioneira nos estudos genéticos bacterianos, tem o seu nome associado a uma série de contribuições científicas, incluindo a descoberta do vírus bacteriano, responsável pela destruição da bactéria E.Coli.
Lederberg nasceu em 1922. Apesar de já existirem alguns avanços nesse sentido, a cientista viveu numa época em que a mulher continuava a ser vista como um ser inferior. Daí que, apesar dos seus feitos serem tão impressionantes quanto os do marido, o biólogo molecular Joshua Lederberg, não tenha tido o mesmo reconhecimento que o seu companheiro. Na altura, muitas mulheres que trabalhavam na área das ciências – muitas vezes nos grupos de trabalho dos maridos – não recebiam os créditos devidos pelos seus estudos, desenvolvendo tarefas apenas pelo gosto e não com o intuito de ganhar nome na área.
Joshua raramente reconhecia o trabalho da mulher em público e o seu trabalho foi mantido ‘na escuridão’ durante vários anos. A historiadora Pnina Abir-Am disse à revista National Geographic que a presença de Esther passava despercebida em público. Abir-Am defende que a cientista passou muito tempo a gerir a carreira do marido e a desvalorizar os seus feitos. “Muita da energia, criatividade e outras características eram despendidas com o Joshua. Eles acabavam por formar um só”, afirma a historiadora. No entanto, apenas Joshua foi galardoado com o prémio Nobel, em 1958.
Com o passar dos anos, o trabalho de Esther começou a ser reconhecido pela comunidade científica, chegando mesmo a lecionar em grandes universidades e publicar estudos pioneiros, como foi referido. Morreu em 2006, aos 83 anos.
Chandra Bose
À medida que os séculos avançavam, eram criadas cada vez mais invenções – as patentes tornaram-se indispensáveis no dia-a-dia dos génios. Mas alguns inventores não ligavam à parte burocrática e acabaram por cair no esquecimento. É o caso de Jagadish Chandra Bose.
Nascido em 1858 na Índia, Bose foi o responsável, na década de 1890, pela descoberta da capacidade dos cristais de galena no que diz respeito à captação de sinais de rádio. No entanto, Bose nunca se preocupou em patentear a sua descoberta, deixando-a, assim, ao ‘deus dará’.
Aproveitando a falta de jeito de Bose para a burocracia, o conhecido Guglielmo Marconi, inventor do rádio, terá usado o dispositivo inventado pelo génio indiano para receber o primeiro sinal transatlântico sem fios, em 1901.
Hoje em dia, o trabalho de Jagadish Chandra Bose é visto com outros olhos e o papel do investigador indiano na história da ciência foi reavaliado – muitos encaram o seu trabalho como um contributo imprescindível para o desenvolvimento das comunicações.
Fernando Pessoa
Pode parecer estranho – tendo em conta que hoje vemos os seus versos escritos em todo o lado – mas a verdade é que Fernando Pessoa nem sempre foi um dos principais nomes da poesia portuguesa. Nascido em 1888, em Lisboa, Pessoa era ignorado pelos seus pares e descredibilizado por outros tantos. Só após a sua morte, em 1935, é que a sua obra começou a ser reconhecida.
Fernando Pessoa publicou o seu primeiro ensaio de crítica literária em 1912, a primeira prosa criativa – parte do Livro do Desassossego – em 1913 e os primeiros poemas de adulto um ano depois.
“Respeitado em Lisboa como intelectual e como poeta, colaborou regularmente [publicou regularmente o seu trabalho] em revistas, algumas das quais ajudou a fundar e a dirigir, mas o seu génio literário só foi plenamente reconhecido após a sua morte. No entanto, Pessoa estava convicto do próprio génio, e vivia em função da sua escrita”, escreve Richard Zenith, especialista na obra do poeta português, no site da Casa Fernando Pessoa.
Era uma pessoa reservada, com pouca ou nenhuma vida social e amorosa, resguardando-se na escrita e nas suas criações – criações essas que fez questão de guardar, papel a papel. “Ninguém fazia ideia de quão imenso e variado era o universo literário acumulado na grande arca onde ia guardando os seus escritos ao longo dos anos”, explica Zenith. Ao todo, Pessoa guardou mais de 25 mil folhas com poemas, prosas, críticas literárias, traduções, horóscopos e outros textos. Para além disso, Pessoa escrevia sob dezenas de nomes: os seus heterónimos poéticos mais conhecidos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Maximiliano Augusto Hermann
Este nome pode dizer-lhe pouco, mas faz parte da história das comunicações. O inventor português, um inspetor das linhas telegráficas da Companhia dos Caminhos-de-Ferro Portugueses do Norte e Leste nascido em 1832, foi responsável pela criação do telefone de parede, em 1880. Este aparelho era composto por dois auscultadores e um microfone fixo. O telefone de parede teve um papel muito importante aquando da inauguração das linhas públicas de Lisboa e do Porto.
Não existem dados exatos, mas de acordo com dados publicados no site dedicado à fundação da Portugal Telecom, foram instalados em Lisboa cerca de 100 telefones de parede.
Hermann morreu em 1913 e, fora do mundo das comunicações, poucos conhecem os seus feitos, mas, graças à internet, é fácil encontrar vários textos sobre este inventor português.
Jaime Filipe
Tudo o que nos rodeia teve de ser inventado. Até as coisas mais simples, que nos escapam no dia-a-dia. Sabia que, por exemplo, as bolas de vento para microfones, ainda hoje usadas por várias estações televisivas, foram criadas por um português?
Jaime Filipe, o autor desta invenção, foi um inventor português e o pioneiro da Engenharia de Reabilitação em Portugal, nascido em 1923 em Lisboa. Foi também o génio por detrás da criação do eletrovisor – Sistema de Visão Tátil para cegos, do elevador de cadeiras de rodas e da bengala eletrónica para cegos.
O reconhecimento do seu trabalho surgiu um ano antes da sua morte (1992), quando o Presidente da República, Mário Soares, atribuiu a este engenheiro português o grau de Grande Oficial da Ordem do Mérito.