Bem sei que muitos de vocês me acham mórbida. “Raio da rapariga que está sempre a escrever sobre a morte”, logo ela, que parece gostar tanto de viver. E gosto. Acho que é por gostar tanto de viver que penso muito na morte – às vezes temo-a e dá-me aqueles apertos noturnos em que acordo assustada com medo de perder quem amo e, noutros momentos, sinto só mesmo uma intensa curiosidade por ela. O desconhecido assusta, mas também atrai. Dou por mim a perguntar ao Pedro o que se passa do outro lado e a desejar que ele me sussurre todas as novidades e detalhes sobre o que não podemos ver (por mais assustador que isso possa parecer).
Apesar de nada sabermos sobre a morte temos, pelo menos, as tradições e os hábitos sociais que nos ajudam a encará-la (confesso, não sou grande admiradora dos nossos métodos, somos demasiado trágicos e pouco poéticos). Ditam as convenções que se vele o corpo, que se enterre o corpo, que se veja o corpo a desaparecer a sete palmos ou a mais do que sete – se a dor for mais profunda. É assim que acreditamos que aquilo está mesmo a acontecer. Mesmo que não goste da forma como se encara a morte, a verdade é que são esses hábitos que nos dão alguma tranquilidade porque nos obrigam a ver. Obrigam-nos a acreditar que aquele ciclo fechou. Obrigam-nos a ver mesmo que tapemos a cara e a escondamos no colo de quem nos abriga. Somos obrigados a ver.
Ninguém pode negar a brutalidade destas emoções, mas e as outras? E todas as outras vezes em que enterramos, emocionalmente, quem ainda está vivo? E desses enterros em que não há velório, nem cerimónia, nem discurso, nem despedida, nem apertos de mão, nem “os meus sentimentos”, mas onde se sente tudo com a mesma força? Como se faz o luto de quem ainda está vivo? Como se curam as perdas emocionais, que são tão marcantes, tão dolorosas como as outras?
Falava com um grande amigo meu sobre isto. Chegámos à conclusão que somos todos viúvos. Que todos nós poderíamos usar um véu negro por cima da cabeça porque era válido, e que também nós já entrámos nalguns caixões. Todos nós morremos ao longo da vida para projetos, fases, sonhos. Todos nós somos viúvos – não os vimos descer pela terra mas eles desceram, efetivamente. Ninguém lhes atirou com terra para cima, mas eles soterraram parte da nossa história também.
Neste nosso debate efusivo, perguntava-lhe: “Já viste se eu te dissesse que não aceitava a morte dele? Como reagiriam todos? Tive de aceitar. Estava ali, à minha frente, não havia outra forma de o fazer. Era óbvio. Então porque têm as pessoas tanta dificuldade em aceitar separações e em terminar amizades que já não funcionam nem fluem, mas que estão apenas ligadas a um doce passado? Porque insistem tanto em reclamar um amor que já não existe, uma história que já não é real, justificando sempre “não acredito que acabou?” Já viste que só aceitamos que acabou quando se vê? Que não somos capazes de aceitar a nossa perda e perceber que também se faz o luto de gente que está viva?”
Quando é que nos apercebemos que morremos muitas vezes durante a nossa existência? Que não tem mal, faz parte, só temos de aprender a renascer depois?
Por isso é que somos uns caraças de uns zombies. Arrastamo-nos, ensonados, cansados, exaustos, em empregos, em relações, em rotinas que já não queremos, e não nos apercebemos que estamos mortos. Mortos que ainda pensam que estão vivos. E se aceitássemos a morte dessa fase, desse momento e deixássemos que a vida nos parisse de novo?
Hoje ligou-me uma amiga que me dizia: “Lembro-me tantas vezes de me dizeres que morremos muitas vezes durante a vida. Foi isso que aconteceu comigo. Deixei que acontecesse, não contrariei, e agora sinto que estou a nascer de novo.”
Quando é que nos apercebemos que morremos muitas vezes durante a nossa existência? Que não tem mal, faz parte, só temos de aprender a renascer depois?
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