É grave! Não tenhamos medo da expressão: é, de facto, grave. O futebol em Portugal transpira de nomes de peralvilhos alarvejados, autênticos machuchos que o tornam, muitas vezes, um lugar bem pouco recomendável, mas pouco se fala de Cândido de Oliveira. Falemos nele, portanto. Com a devida vénia. A propósito da Supertaça, pois então, mas sabendo que ele não foi apenas jogador do Benfica e do Casa Pia, primeiro capitão da primeira seleção nacional, treinador emérito que teve sob o seu comando Os Cinco Violinos, selecionador nacional e jornalista, fundando com Ribeiro dos Reis e Vicente de Melo, A Bola, e morrendo por entre os relvados do Campeonato do Mundo da Suécia, em 1958.
Recuemos até ao início da II Grande Guerra. Em Portugal, é tempo dos racionamentos, da censura prévia aos meios de comunicação, dos aumentos de preços, da escassez de bens essenciais, do enriquecimento dos especuladores, da total ausência de liberdade sindical, da mobilização em larga escala das forças policiais. Por tudo isto, um surto grevista assola o país. Considerados como «agitadores profissionais a soldo de Moscovo», os cabecilhas são presos e a perseguição aos dirigentes comunistas que coordenam clandestinamente estes movimentos de luta é assanhada.
Cândido Fernandes Plácido de Oliveira, alcunhado por muitos dos seus amigos de Chumbaca, graças à sua figura física corpulenta e atarracada, selecionador nacional de futebol, é um indefetível apoiante dos movimentos de insurreição que se espalham pelo território. Democrata convicto toma desassombradas posições públicas contra os regimes de Hitler, de Mussolini e de Franco e não perdoa a Salazar a colagem a tais ideais fascistas.
A coragem intelectual de Cândido só tem paralelo na sua coragem física. O sem-número de prisões levadas a cabo pela PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) não deixam o seu nome passar em claro. É brutalmente torturado e espancado a ponto de lhe terem partido todos os dentes. A interrupção abrupta da atividade da seleção nacional, por via do conflito, coincide com o seu encarceramento. No verão de 1942 é enviado para o Tarrafal.
O Pântano da Morte
Criada pelo decreto n.º 26539 de 23 de abril de 1936, a Colónia Penal do Tarrafal estava destinada a receber os presos condenados a pena de desterro pela prática de crimes políticos. Situado na ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, o campo ficava instalado numa zona pantanosa onde não havia água potável nem comunicações para o interior da ilha. Era o local de mais intenso paludismo em Cabo Verde, o que fez com que grande parte dos deportados fosse dizimada pela doença e com que os que regressaram à metrópole viessem subjugados pela variante crónica da enfermidade. Foi neste lugar que Cândido de Oliveira passou os seguintes dezoito meses da sua vida. Ali se encontrou com muitas outras grandes figuras do antifascismo, como Bento Gonçalves (que lá morreu), Edmundo Pedro ou Júlio Fogaça. Sobre ele escreveu um livro chamado Tarrafal – O Pântano da Morte, publicado a título póstumo, após o 25 de Abril de 1974, e que é um testemunho marcante do arremedo de vida que levavam os prisioneiros daquele que foi o campo de concentração do fascismo português.
«Dentro do Campo não se vive! Aguarda-se a morte! É a morte lenta, mas certa. Apenas uma questão de tempo… A pobreza de alimentação, a devastação operada pelo clima, a falta de assistência médica e farmacêutica, o estiolamento com base no trabalho forçado sob a canícula tropical, as duras sanções, a falta de higiene, o isolamento, o ascetismo compulsivo, tudo somado causa, fatalmente, a ruína física, o desarranjo fisiológico e apressa a morte. (…) Até agora morreram 30 deportados, na sua quase totalidade abatidos pelo golpe brutal e final da biliosa. Mas esse número não diz tudo. Procure-se conhecer o quadro sanitário do Campo; os casos de paludismo crónico, por falta de tratamento e pelas sucessivas infeções; e os tuberculosos e outras doenças pulmonares, com origem na miséria alimentar e no clima; e os de anemia palustre e de doenças hepáticas herdadas do paludismo; e os de desarranjo psíquico com base no duro isolamento e na castidade forçada; todos os casos, enfim, de doença ou de carência operados pelo pântano do Tarrafal e pelo duro regime prisional, e só então poderemos avaliar em toda a sua grandeza a obra do Governo do Dr. Salazar como meio de exterminar o antifascismo em Portugal!».
O homem e a luta
Em março de 1945 já não há dúvidas quanto ao destino da guerra. Abril traz consigo a ironia da morte de Roosevelt, do assassínio de Mussolini e do suicídio de Hitler no espaço de poucos dias. Em Maio, os aliados entram em Berlim e a Alemanha rende-se incondicionalmente. As manifestações espontâneas de alegria pela vitória aliada rebentam um pouco por todo o país. Com elas, aparecem novas exigências: liberdade política e sindical; eleições livres; libertação dos presos políticos; encerramento do campo de concentração do Tarrafal.
Cândido de Oliveira está de regresso a Lisboa. Demitido dos Correios Telégrafos e Telefones (CTT), onde trabalhara longos anos, dedica-se a A Bola.
Atribuíram-lhe o nome da Supertaça. Infelizmente para ele, um troféu de pouco brilho, perdido nas confusões de Verão. Foi um exemplo de valentia e de verticalidade. Um homem que encarou o futebol como um fenómeno social que deveria ser sempre balizado pelos princípios ferozes do respeito pelos adversários e da verdade desportiva. Chamaram-lhe Chumbaca. Tantos e tantos homens procuraram dobrá-lo. E ele, na sua figura forte, atarracada, de gente que se prende ao chão fértil das suas razões, esperou-os de peito aberto. E nunca se escondeu.