Dunquerque. Está aí. O filme, quero dizer.
Christopher Nolan, londrino, mais dado a homens-morcegos, homens-de-aço.
Ou talvez trazendo de novo para a tela esses homens-de-aço cercados numa praia sem saída, o fracasso da Linha Maginot, preparada para ser inultrapassável até que as máquinas de guerra nazis a transformassem numa pilhéria sem piada.
A fronteira franco-alemã tornou-se um passadouro. Tanques espezinhando a terra ensanguentada. As lagartas repetindo-se em som metálico com balas ao fundo, Ardenas, Sedan, nomes que ressoam pelos ecos da História do Mundo como personagens de Mousset.
Uma derrota insustentável: o Primeiro e o Sétimo Exército franceses, a Força Expedicionária Britânica. A inevitabilidade da morte; a fobia da fuga.
Dunquerque é sinónimo de medo.
O medo que se sobrepôs à coragem.
Mas também da resistência sem limite.
Os campos da Flandres, dos Países Baixos, tremiam ao ribombar das botas germânicas, ritmo ininterrupto do poder nazi.
Leiam Hugo Claus. Leiam “O Desgosto da Bélgica”!
Belgas e franceses acantonam-se em Armentières. Calais está cercada. Resta o mar.
Nunca as vagas da Mancha terão sido tão convidativas para os homens-de-aço que aprendiam a conhecer o medo. Abriam-se em espuma branca de braços de mãe.
Uma ilha do outro lado do canal. Ah! E o canal que deixaria, finalmente, isolado um Continente.
Christopher Nolan dirige Fionn Whitehead, Tom Glynn-Carney, Kenneth Branagh, Harry Stiles…
Foi filmado precisamente em Dunquerque.
O Êxodus da II Grande Guerra. Última semana de Maio de 1940; primeira semana de Junho.
Operação Dínamo: no dia 26 de Maio, a expectativa era grande. Evacuar em 48 horas pelo menos 45 mil soldados.
Durante nove dias, os céus de Hauts-de-France foram riscados pelo rasto dos aviões numa vertigem de morte: 176 aparelhos alemães abatidos; 106 britânicos.
Hauts-de-France: o nome não podia vir mais a propósito.
Roosevelt apelava pela rádio: “Hoje, nas outrora pacíficas estradas da Bélgica e da França, há milhões de pessoas em movimento, fugindo das suas casas para escaparem às bombas, às granadas e às metralhadoras, sem abrigo e quase sem alimento. Vagueiam ao acaso sem saberem qual será o fim do seu caminho”.
Por seu lado, o general Michels escrevia no seu diário: “O anel de fogo fecha-se à nossa volta. Milhares de refugiados, misturados com a população local, fogem por uma estreita faixa de território inteiramente exposta ao fogo de artilharia e aos bombardeamentos aéreos. Os nossos últimos meios de resistência cedem sob o peso de uma superioridade esmagadora; já não podemos esperar qualquer apoio, ou qualquer outra solução que não seja a destruição total”.
O limite da resistência humana fica sempre para lá do limite da resistência.
As praias de Dunquerque estavam apinhadas de tropas que esperavam pelos botes que as levariam para os navios e, mais longe, para as rochas brancas de Dover.
O Rei dos belgas pediu um armistício. Dia 28 de Maio, a Bélgica rende-se sem condições.
Ah! Sim! O desgosto da Bélgica!
Churchill manda combater nas praias: “Nada do que possa vir a acontecer em Dunquerque pode, em caso algum, libertar-nos do nosso dever de defender a causa mundial à qual nos devotámos; nem deverá destruir a nossa confiança na capacidade que temos de avançar, como em tantos outros momentos da nossa História, por entre o luto e a desgraça até à derrota final dos nossos inimigos”.
Vinte e quatro horas antes desse discurso emotivo na Câmara dos Comuns, mais de 14 mil homens tinham sido evacuados.
A operação era persistente como a convicção do velho senhor.
No dia seguinte, mais 25 mil homens saíam de Dunquerque.
Wilhelm Mohnke, oficial das SS, capitão. Um canalha. Em Wormhour, a cerca de 20 quilómetros de Dunquerque, quarenta e cinco homens do Royal Warwickshire Regiment, defendiam-se como podiam.
Quem o conta é Martin Gilbert, grande historiador das duas guerras.
Renderam-se os quarenta e cinco. Foram fechados num palheiro. Mohnke, o carniceiro, juntou-os a outros quarenta britânicos capturados nessa manhã. Mandou que fossem desfeitos pelo efeito de granadas, como se fossem ratazanas. Os que procuravam fugir à carnificina eram abatidos.
Mohnke fumava um cigarro e murmurava: “Devíamos era abatê-los a todos”.
Mas havia gente de retorno à Grande Ilha. No dia 29 de Maio, calculava-se que já teria sido possível evacuar cerca de 44 mil homens.
A Batalha de Dunquerque aproximava-se do fim.
As papoilas dos campos da Flandres já não floriam como no poema de John McCrae.
Mais números.
Dia 31 de Maio: 68 mil tropas britânicas e francesas evacuadas ao longo de 24 horas.
Juntavam-se barcos de pesca belgas para a recolha derradeira.
O exército alemão levava tudo na sua frente até ao mar.
Meia-noite, 2 de Junho: os últimos 3 mil homens saíam de Dunquerque. 338.226 homens em sete dias. Centenas de navios mercantes, trinta e oito contratorpedeiros, corvetas, dragas minas, simples botes.
Dunquerque foi a vitória da derrota. Uma operação de fuga de tamanho sucesso que valeu por um triunfo num combate. Chegara ao fim esse combate das praias dos que nunca se rendem.
O general Alexander e o comandante naval de Dunquerque, capitão de mar e guerra Tennant, percorrem as margens de barco, confirmando que não restava nem mais um soldado para salvar.
Hitler explodia de fúria: “Será a França a pagar a factura!”
Os aliados voltariam numa manhã de sol. Na Normandia.