O elogio (precoce) da revolução bolivariana


O PCP saudou os venezuelanos “pelo expressivo e determinado acto de afirmação soberana e democrática”. Para os comunistas, somos todos livres de viver em democracia, desde que essa democracia seja um regime estalinista


Tal como em Portugal – porventura uma mera coincidência –, também o Ministério Público Venezuelano, pela boca da (temerária) procuradora-geral, Luísa Ortega, veio dar conta do número de mortos e feridos nas ruas da Venezuela desde que começaram os protestos contra o governo de Nicolás Maduro. Se fossem comunistas contra ditaduras de direita, seriam mártires da liberdade; como são democratas contra uma tomada de poder da esquerda radical contra a Assembleia Nacional, são agitadores a mando do capital e do neocolonialismo.

Lá, tal como cá, o governo não se sente obrigado a dar informações sobre números de vítimas, tendo de ser o Ministério Público a fazê-lo.

Alguns observadores mais cínicos tenderiam a ver aí um padrão… uma espécie de contaminação no ADN da coligação de apoio ao governo, mas tal seria certamente contrário aos seus importantes pergaminhos democráticos. 
A verdade é que, no país das maravilhas do PCP, e agora menos do BE, noticiava o “DN” de 31 de Julho: “A procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega Díaz, informou esta segunda-feira que 121 pessoas perderam a vida e outras 1958 foram feridas desde 1 de abril, quando começaram os protestos contra o governo do presidente Nicolás Maduro.”

Este país em que a toda a oposição está há meses na rua, e em que alguma esquerda já descobria a terra prometida da ditadura do proletariado, viu no início do ano passado ter sido decretado o estado de “crise humanitária” e, em Março deste ano, a Assembleia Nacional Venezuelana decretou também estar o país em estado de “emergência alimentar”. Curiosamente, ou não, esse tem sido o resultado comum destas experiências colectivistas.

Noticiava, à data, o “Jornal Económico” que um deputado venezuelano afirmara: “Mais de metade das crianças do país sofrem de desnutrição e três milhões de venezuelanos procuram diariamente alimentos nos contentores de lixo por já não terem mais nada para comer. Estima-se que mais de 80% da população passe fome.”

No entanto, Nicolás Maduro, segundo a mesma fonte, “contradiz as informações avançadas pelo órgão legislativo venezuelano e assegura que, em 2016, a pobreza no país baixou de 19,7% para 18,3% e o indicador de miséria diminuiu de 4,9% para 4,4%”.

Algo contraditoriamente, no jornal venezuelano “La Patilla”, citado pelo “Observador”, referia-se que: “Segundo o FMI, a Venezuela terminará 2017 com uma contração do PIB de 7,4%, completando quatro anos consecutivos de queda do PIB – 3,9% de queda em 2014, 6,2% em 2015 e uma quebra de 18% em 2016. Para 2018, o FMI estima que a recessão será de 4,1%.” E ainda: “Quanto à inflação, as projeções apontam que passará de três dígitos para hiperinflação em 2018, passando de 720,5% em 2017 para 2068,5 no próximo ano, o que representa uma calamidade económica enorme.” Segundo o FMI, “a pobreza atingiu 82% e a taxa de assassinatos está a aumentar”, situação que está a obrigar os venezuelanos a emigrar.

A esta ditadura dos números e dos factos veio opor-se a costumada vanguarda da utopia ideológica.

Desde logo, Boaventura Sousa Santos, no “Público”, minimiza os números e diz-se “chocado com a parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela”, e por isso fala com saudade dos números de 2015 e, de caminho, ainda refere o seguinte: “Os desacertos de um governo democrático resolvem-se por via democrática, e ela será tanto mais consistente quanto menos interferência externa sofrer. O governo da revolução bolivariana é democraticamente legítimo e ao longo de muitas eleições nos últimos 20 anos nunca deu sinais de não respeitar os resultados destas.”

Dando nota desta enorme tolerância e cultura democráticas que o governo Maduro vem demonstrando, e que BSS tanto elogia e reconhece, com o início de Agosto chegam notícias da prisão de dois destacados líderes da oposição venezuelana, Leopoldo López e Antonio Ledezma, alegadamente por quererem fugir daquele “céu na terra” em que Venezuela se tornou, aparentemente um crime de enorme ingratidão punível com prisão.

E em linha com esta lisura democrática sabemos, entretanto, que a empresa responsável pela contagem dos votos no escrutínio da Constituinte fez uma comunicação em que fala de manipulação eleitoral na Venezuela, referindo não ter dúvidas de que haverá, seguramente, ou sem dúvida alguma, nas suas palavras, uma diferença de pelo menos um milhão de votos entre os reais e os declarados.

Tal, porém, não impede que Maduro – em linha, aliás, com o doutrinário de BSS – reclame, neste cenário de transparência e liberdade, que: “É a maior votação que a Revolução Bolivariana conseguiu em toda a história eleitoral, em 18 anos.”

Resistimos à tentação de retorquir que “assim também eu…”, mas se calhar vale mais a pena salientar que vivendo o mesmo deslumbre pela democracia bolivariana em acção, ao mesmo tempo, o site oficial do PCP publicou, em 31 de Julho, sobre as eleições para a Constituinte (o tal processo de escrutínio conduzido com tropa e milícias nas ruas, certamente para garantir tranquilidade e paz sociais): “O PCP saúda o povo venezuelano pelo expressivo e determinado acto de afirmação democrática e soberana que a participação popular na eleição da Assembleia Nacional Constituinte representa. (…) As manobras para intensificar a guerra económica e a violenta desestabilização golpista, as campanhas de mentira, de desinformação ou de ingerência externa – de que são exemplo as ameaças da Administração norte-americana, da União Europeia e de outros países alinhados com o imperialismo na agressão à revolução bolivariana – constituem um ataque ao povo venezuelano, à soberania nacional, à democracia, e uma clara violação do direito internacional.”

Esta incontrolável deriva totalitária de esquerda confunde-se sempre com este ideal de liberdade democrática do PC – de que todos somos livres de escolher viver em democracia, desde que essa democracia seja um regime estalinista em que os comunistas (e só eles) mandem. Não será muito diferente no BE, pesem embora as últimas tomadas de posição públicas.

Manietados pela execução orçamental, resta aos parceiros a sua componente de reserva ideológica da coligação, e assim, perante esta abundante amostra, é caso para invocar que antigamente se dizia “diz-me com quem andas…” e que ninguém quereria estar associado a quem defenda tamanhas iniquidades. Mas isso foi antes deste tempo novo… 

Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt 
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


O elogio (precoce) da revolução bolivariana


O PCP saudou os venezuelanos “pelo expressivo e determinado acto de afirmação soberana e democrática”. Para os comunistas, somos todos livres de viver em democracia, desde que essa democracia seja um regime estalinista


Tal como em Portugal – porventura uma mera coincidência –, também o Ministério Público Venezuelano, pela boca da (temerária) procuradora-geral, Luísa Ortega, veio dar conta do número de mortos e feridos nas ruas da Venezuela desde que começaram os protestos contra o governo de Nicolás Maduro. Se fossem comunistas contra ditaduras de direita, seriam mártires da liberdade; como são democratas contra uma tomada de poder da esquerda radical contra a Assembleia Nacional, são agitadores a mando do capital e do neocolonialismo.

Lá, tal como cá, o governo não se sente obrigado a dar informações sobre números de vítimas, tendo de ser o Ministério Público a fazê-lo.

Alguns observadores mais cínicos tenderiam a ver aí um padrão… uma espécie de contaminação no ADN da coligação de apoio ao governo, mas tal seria certamente contrário aos seus importantes pergaminhos democráticos. 
A verdade é que, no país das maravilhas do PCP, e agora menos do BE, noticiava o “DN” de 31 de Julho: “A procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega Díaz, informou esta segunda-feira que 121 pessoas perderam a vida e outras 1958 foram feridas desde 1 de abril, quando começaram os protestos contra o governo do presidente Nicolás Maduro.”

Este país em que a toda a oposição está há meses na rua, e em que alguma esquerda já descobria a terra prometida da ditadura do proletariado, viu no início do ano passado ter sido decretado o estado de “crise humanitária” e, em Março deste ano, a Assembleia Nacional Venezuelana decretou também estar o país em estado de “emergência alimentar”. Curiosamente, ou não, esse tem sido o resultado comum destas experiências colectivistas.

Noticiava, à data, o “Jornal Económico” que um deputado venezuelano afirmara: “Mais de metade das crianças do país sofrem de desnutrição e três milhões de venezuelanos procuram diariamente alimentos nos contentores de lixo por já não terem mais nada para comer. Estima-se que mais de 80% da população passe fome.”

No entanto, Nicolás Maduro, segundo a mesma fonte, “contradiz as informações avançadas pelo órgão legislativo venezuelano e assegura que, em 2016, a pobreza no país baixou de 19,7% para 18,3% e o indicador de miséria diminuiu de 4,9% para 4,4%”.

Algo contraditoriamente, no jornal venezuelano “La Patilla”, citado pelo “Observador”, referia-se que: “Segundo o FMI, a Venezuela terminará 2017 com uma contração do PIB de 7,4%, completando quatro anos consecutivos de queda do PIB – 3,9% de queda em 2014, 6,2% em 2015 e uma quebra de 18% em 2016. Para 2018, o FMI estima que a recessão será de 4,1%.” E ainda: “Quanto à inflação, as projeções apontam que passará de três dígitos para hiperinflação em 2018, passando de 720,5% em 2017 para 2068,5 no próximo ano, o que representa uma calamidade económica enorme.” Segundo o FMI, “a pobreza atingiu 82% e a taxa de assassinatos está a aumentar”, situação que está a obrigar os venezuelanos a emigrar.

A esta ditadura dos números e dos factos veio opor-se a costumada vanguarda da utopia ideológica.

Desde logo, Boaventura Sousa Santos, no “Público”, minimiza os números e diz-se “chocado com a parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela”, e por isso fala com saudade dos números de 2015 e, de caminho, ainda refere o seguinte: “Os desacertos de um governo democrático resolvem-se por via democrática, e ela será tanto mais consistente quanto menos interferência externa sofrer. O governo da revolução bolivariana é democraticamente legítimo e ao longo de muitas eleições nos últimos 20 anos nunca deu sinais de não respeitar os resultados destas.”

Dando nota desta enorme tolerância e cultura democráticas que o governo Maduro vem demonstrando, e que BSS tanto elogia e reconhece, com o início de Agosto chegam notícias da prisão de dois destacados líderes da oposição venezuelana, Leopoldo López e Antonio Ledezma, alegadamente por quererem fugir daquele “céu na terra” em que Venezuela se tornou, aparentemente um crime de enorme ingratidão punível com prisão.

E em linha com esta lisura democrática sabemos, entretanto, que a empresa responsável pela contagem dos votos no escrutínio da Constituinte fez uma comunicação em que fala de manipulação eleitoral na Venezuela, referindo não ter dúvidas de que haverá, seguramente, ou sem dúvida alguma, nas suas palavras, uma diferença de pelo menos um milhão de votos entre os reais e os declarados.

Tal, porém, não impede que Maduro – em linha, aliás, com o doutrinário de BSS – reclame, neste cenário de transparência e liberdade, que: “É a maior votação que a Revolução Bolivariana conseguiu em toda a história eleitoral, em 18 anos.”

Resistimos à tentação de retorquir que “assim também eu…”, mas se calhar vale mais a pena salientar que vivendo o mesmo deslumbre pela democracia bolivariana em acção, ao mesmo tempo, o site oficial do PCP publicou, em 31 de Julho, sobre as eleições para a Constituinte (o tal processo de escrutínio conduzido com tropa e milícias nas ruas, certamente para garantir tranquilidade e paz sociais): “O PCP saúda o povo venezuelano pelo expressivo e determinado acto de afirmação democrática e soberana que a participação popular na eleição da Assembleia Nacional Constituinte representa. (…) As manobras para intensificar a guerra económica e a violenta desestabilização golpista, as campanhas de mentira, de desinformação ou de ingerência externa – de que são exemplo as ameaças da Administração norte-americana, da União Europeia e de outros países alinhados com o imperialismo na agressão à revolução bolivariana – constituem um ataque ao povo venezuelano, à soberania nacional, à democracia, e uma clara violação do direito internacional.”

Esta incontrolável deriva totalitária de esquerda confunde-se sempre com este ideal de liberdade democrática do PC – de que todos somos livres de escolher viver em democracia, desde que essa democracia seja um regime estalinista em que os comunistas (e só eles) mandem. Não será muito diferente no BE, pesem embora as últimas tomadas de posição públicas.

Manietados pela execução orçamental, resta aos parceiros a sua componente de reserva ideológica da coligação, e assim, perante esta abundante amostra, é caso para invocar que antigamente se dizia “diz-me com quem andas…” e que ninguém quereria estar associado a quem defenda tamanhas iniquidades. Mas isso foi antes deste tempo novo… 

Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt 
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990