Ata-me. Esta coisa de amar pode começar pelo ódio

Ata-me. Esta coisa de amar pode começar pelo ódio


Almodóvar filma a história de dois seres quebrados à procura do amor, unidos por um sequestro, e é ele que a sequestra. Uma obra de humor ao negro.


Os caminhos do amor são insondáveis. O que leva duas pessoas a pensar que o outro é aquilo que lhes falta para se sentirem mais completas? E por que razão os amores devem sempre começar da mesma forma? Porque não começar o amor por outro princípio, pelo ódio e construir a partir daí?

“– Quem és tu?

– Sou o que te atacou, lembras-te?

– Tentei falar contigo, mas não me deixaste. Assim, tive de raptar-te para que possas conhecer-me a fundo. Estou convencido que te apaixonarás por mim como eu estou apaixonado por ti.”

É isso que diz Ricky (o pequeno delinquente, órfão que passou a vida em instituições sociais e acaba de ser libertado de uma delas, interpretado por Antonio Banderas), em jeito de confissão de amor e deixa de sedução, a Marina Osorio (a atriz porno e de terror e ex-toxicodependente a que Victoria Abril dá vida).

Filmado logo a seguir ao êxito mundial de “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos”, “Ata-me!” serviu de confirmação da qualidade do realizador e marcou o salto de Banderas para o cinema de Hollywood.

Almodóvar sempre andou entre a comédia desbragada e o melodrama, carregando nos tons negros no segundo, sem nunca deixar de os manter mesmo no maior dos risos e das explosões de cor. As suas personagens carregam sempre o peso do passado, da culpa, são figuras marcadas à procura da expiação. Pairando sobre todas elas (deixando marcas a ferro e fogo), os símbolos opressores de uma religião católica sempre omnipresente e omnisciente. A religião em Almodóvar está sempre entre o brilho kitsch da iconografia e as profundas sombras da culpa.

O mesmo acontece neste “Ata-me!”, onde duas figuras que caminhavam trilhos muito diferentes acabam por perceber, através da via violenta do sequestro, que são feitos um para o outro, que são dois seres quebrados a precisar da cola desse amor.

Se no melodrama anterior de Almodóvar, “Labirinto de Paixões”, o amor de Banderas era intenso, carnal e selvagem, e não podia desembocar noutra consequência que não fosse a morte, aqui, o amor continua a ser intenso, carnal e igualmente selvagem, as marcas do negro estão muito presentes, só que o realizador planta no filme momentos de humor, de potencial gargalhada (como a célebre cena do mergulhador de brincar transformado em fonte de prazer na banheira), sempre a apontar na direção de um desenlace contrário ao de “Labirinto de Paixões”.

A canção do Duo Dinámico liga na perfeição com o filme – o realizador sempre teve ouvido para escolher o momento musical adequado no cancioneiro popular em espanhol – : “Resistirei para continuar a viver/ aguentarei os golpes e jamais me renderei”. Este é um filme sobre almas marcadas que se recusam a aceitar o lugar marginal que a vida lhes quis dar.

Principalmente Ricky, que a partir do lado errado das revistas cor-de-rosa, o do leitor que tenta imaginar três dimensões a partir de bidimensionais retratos das “estrelas”, estabelece um plano para conseguir conquistar o amor da sua vida. Que essa conquista implique o rapto e o sequestro, que comece por ser uma relação violenta, que arrisca alienar o ser que mais ama para dela receber o seu amor é a prova maior de amor que pode dar. Ricky ama e está disposto a tudo por esse amor.

Como afirmava o realizador em 1989, em declarações ao “El Mundo”, “Ata-me” é “uma história de amor, das de verdade, feita sem pudor e que fala sem pudor da necessidade que todos temos de que alguém nos queira”. É um enorme e intenso amo–te (ata-me e amo-te são duas palavras tão próximas), disposto a tudo, “porque não queremos nem podemos viver sem amor”.