Berlim bate o pé a Erdogan

Berlim bate o pé a Erdogan


Governo alemão perdeu a paciência com a deriva autoritária turca e anunciou reorientação política. Investimento e turismo devem diminuir, e os fundos cedidos pela União Europeia serão revistos.


Se for alemão e estiver a pensar em ir de férias para a Turquia, é melhor pensar duas vezes. O mesmo se aplica para o caso de querer viajar em negócios ou investir no país. Pelo menos este é o conselho do Governo de Angela Merkel. A detenção recente, sob suspeita de ligações terroristas, de um ativista de direitos humanos que se deslocou à Turquia para participar num workshop da Amnistia Internacional, levou Berlim a anunciar uma mudança brusca nas suas relações com o país de Recep Tayyip Erdogan e a intensificar os alertas sobre os riscos inerentes a uma deslocação à Turquia.

Numa conferência de imprensa na passada quinta-feira, o Ministro dos Negócios Estrangeiros apresentou-se aos jornalistas com cara de poucos amigos e afirmou que a prisão do ativista Peter Steudtner – detido na mesma operação que colocou atrás das grades Idil Eser, a diretora da Amnistia Internacional na Turquia – provou que «qualquer um pode ser afetado por detenções arbitrárias» e ser acusado de terrorismo. Para além daquele, também Deniz Yücel, correspondente do Die Welt, se encontra preso desde fevereiro, pelos mesmos motivos, realidade que levou levou Sigmar Gabriel a aconselhar os cidadãos de nacionalidade alemã que estejam a pensar viajar para a Turquia a registarem-se nas listas de emergência dos consulados alemães no país, mesmo que por poucos dias.

Aos avisos do chefe da diplomacia alemã seguiram-se várias tomadas de posição de outros elementos do Governo de coligação CDU-SPD, proferidas com um sentido claro de condicionar o  fluxo de milhões de turistas alemães que todos os anos se desloca para a Turquia – e contribuem para 15% do total das receitas turísticas anuais do Estado turco. Em declarações reproduzidas pela Deutsche Welle, o Ministro da Justiça, Heiko Maas, defendeu que as pessoas devem refletir sobre o facto de passarem férias num país que «não é governado pelo Estado de Direito» e em entrevista ao Bild, o Ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, comparou a postura de Ancara com a dos dirigentes da Alemanha Oriental, na segunda metade do século passado. «Estas detenções arbitrárias recordam-me como as coisas se passavam na RDA [República Democrática Alemã]. As pessoas que viajavam para lá sabiam: ‘se alguma coisa acontecer, ninguém nos poderá ajudar’», conta Schäuble.

Reorientação do investimento

Se os alertas do executivo alemão, no que toca às viagens, prometem mexer com os números do turismo, a nova abordagem assumida no campo económico também poderá vir a alterar o investimento alemão na Turquia. Gabriel revelou que o Governo vai deixar de incentivar as empresas germânicas a investirem em solo turco, no âmbito da «reorientação» da sua abordagem política, concebida para que «os responsáveis em Ancara percebam que as suas políticas têm consequências». A justificação do ministro foi clara: «Não podemos recomendar ninguém a investir num país onde há exemplos de expropriações e onde empresas podem ser rotuladas como terroristas».

No que à economia diz respeito, há que contar ainda com eventuais cortes nas tranches de dinheiro transferidas regularmente pela União Europeia. A Alemanha quer reunir-se com os restantes Estados-membros e rever os valores dos fundos atribuídos a Ancara, definidos pelos acordos assinados no quadro de pré-adesão da Turquia à organização comunitária. «Queremos que a Turquia faça parte do Ocidente, mas são precisas duas pessoas para dançar o tango» explicou Sigmar Gabriel.

As detenções de Steudtner e de Yücel são, na realidade, um pequena gota na onda de repressão ordenada pelo Presidente Erdogan, na sequência da tentativa de golpe de Estado de julho do ano passado. Entre militares, polícias, juízes, opositores políticos, jornalistas, académicos, funcionários públicos e cidadãos comuns, calcula-se que já tenham sido detidas cerca de 50 mil pessoas e demitidas, suspensas ou afastadas outras 150 mil, no espaço de um ano. A grande maioria são suspeitas ou estão acusadas de conluio com líder religioso Fethullah Gulen – exilado nos EUA –, o homem que Ancara identifica como o orquestrador do assalto falhado ao poder. 

Mas há mais, muitos mais turcos, a quem Erdogan assume querer estender o braço e julgar pelo envolvimento no golpe. Neste sentido, não faltam representantes políticos na Alemanha a apregoar que as ordens de prisão decretadas para Steudtner e Yücel não são mais do que uma estratégia propositada para pressionar Berlim a entregar à justiça turca os opositores – sobretudo ex-militares – de Erdogan, escondidos em solo alemão. O deputado ecologista alemão Cem Özdemir descreve mesmo o ativista e o jornalista como «reféns políticos» de Ancara.

A resposta turca ao fim da paciência alemã foi híbrida. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mevlüt Çavusoglu, e o porta-voz de Erdogan, Ibrahim Kalin, qualificaram as «chantagens alemãs» de «inaceitáveis» e ontem Erdogan veio a terreiro para garantir, numa curta declaração, que «ninguém tem o poder de difamar a Turquia». Ao mesmo tempo, os dirigentes turcos pediram a Berlim para se «recompor», focar-se no futuro e não castigar o setor económico. Afinal, o volume de trocas comerciais entre Alemanha e Turquia situa-se bem perto dos 37 mil milhões de euros por ano.

«Não podemos aceitar tomadas de posição que possam distorcer o ambiente económico, baseadas em motivações políticas», disse Kalin aos jornalistas, recordando as «boas relações» existentes entre os dois Estados.
Tendo em conta a reação alemã, essas «boas relações» já terão visto melhores dias.