Voltar à terra


Fez esta semana um mês da tragédia de Pedrógão. A natureza morta a perder de vista, a contrastar com os cabos e as placas novas, deu-me um nó no estômago.


Fomos celebrar o aniversário do meu avô à terra, numa festa daquelas para juntar a família grande que acaba por se ver pouco, caras que já nem lembrava e onde vi traços da minha mãe, meus. Rumámos à Arega, terra da minha avó, com dois dias de antecedência. Tinha planos para dar uma volta mas, ao bom estilo de família italiana, entre discutir o que era preciso fazer e fazer o que havia a fazer, não sobrou grande tempo. 

Foi já no regresso que fui espreitar um dos meus lugares preferidos escondidos na serrania, as Fragas de São Simão. Sabia que o fogo tinha andado perto, mas a caminho das Fragas, e quando cortei para o IC8 e a paisagem começou a ser uma enorme mancha de árvores queimadas de cima a baixo, senti um nó no estômago – aquela dor-medo parecida com quando temos uma vertigem e parece que as pernas ficam com cãibras.

As proteções de borracha dos cabos derretidos a dar lugar a outros já novos, recém-instalados, com as caixas e placas a reluzir, a contrastar com a natureza morta, pareciam uma forma de forçar a normalidade no meio do desalento. Necessária, mas agressiva. E mesmo podendo estar à espera, a violência daquela paisagem acordou de uma forma indescritível o que ficou inquieto cá dentro depois do fogo de Pedrógão, a sensação de que somos pouco quando tudo está contra. E, depois, a vida continua.

Quando era miúda e íamos nas férias grandes para a terra, havia anos em que ficava à noite a ver as chamas ao longe, o vermelho vivo a devorar a serra, como se fosse um espetáculo. A minha avó e os tios, preocupados, não tanto com as terras mas com as pessoas, e eu, menina da cidade, a admirar, como noutras noites ficava deslumbrada com o céu estrelado a perder de vista, como se fossem coisas passíveis de admirar de uma mesma maneira, numa qualquer categoria ingénua de beleza. Fez esta semana um mês do fogo de Pedrógão e soube no fim de semana o quanto as impressões distantes da tragédia, como tudo o que se debateu vezes sem conta, ficaram marcadas cá dentro. 

No caminho para a terra via as árvores penduradas sobre a estrada, às vezes quase a tocarem-se. Qual distância de segurança? Onde é que isso é cumprido? Ali, o que ardeu, ardeu, o que não ardeu está pronto para arder. E é assim por quilómetros e quilómetros de árvores encavalitadas e casas cercadas. Numa noite sonhei com as chamas a aproximarem-se. Por onde fugiríamos? Para onde hão de fugir as pessoas para quem “a terra” é casa?

Falar do fogo com quem lá vive é ouvir que volta e meia ele vem. Sempre assim foi. Tentam safar o que têm como podem, nas pickups, ajudando-se uns aos outros, correndo para o fogo, e não fugindo dele. Há o contrafogo “que os espanhóis usaram” e que cá não é permitido – se os apanham, são incendiários, outras vezes fecha-se os olhos porque o que importa é que funcione. E depois há também a perseguição aos eucaliptos, que é vista como uma discussão de secretaria em Lisboa. Vão plantar o quê e para quê? E limpar as terras? De quantas pessoas é que é preciso limpar as terras para travar o fogo? E com que dinheiro? Limpa-se o que está mais perto de casa.

E o que trabalham aquelas pessoas todas para no verão terem mais isto – há que acordar de madrugada até ser velho ou para lá de velho, ver dos animais que nem rendem assim tanto, correr serra acima e serra abaixo todos os dias. E depois, para que a festa seja boa, todos dão um pouco. Os legumes, o barril de cerveja, o eucalipto verde para fazer a sombra e proteger das fagulhas do churrasco – que quem sabe diz que é assim que se faz. O rapaz do acordeão, que começou a tocar há cinco anos e agora tem 20 e poucos, e é daquilo que gosta. Quando são as nossas raízes, é do acordeão e das rimas das desgarradas que todos gostamos. 

Resta dizer que a festa foi melhor do que poderíamos desejar e até a minha avó de 87 anos dançou o Despacito. Gostava de ter aquela sabedoria dela, a sabedoria da terra, pelo menos tê-la, saber os versos da aldeia de cor, como sachar, que é preciso pôr as cebolas a secar antes de as entrançar, as manhas das ovelhas que aprendem a subir para a carrinha porque lá devem saber que vão para sítios onde há mais pasto. Agora até há uma autoestrada que para quase dentro de casa, não há grandes desculpas para não ir mais vezes – só talvez a sucessão de pórticos na A13, não tanto pela conta final, que não tenho de passar ali todos os dias, mas pelo assalto que se sente quando se sucedem uns aos outros, 50 cêntimos aqui, 25 ali e por aí fora, para que ninguém escape. Ao voltar, fá-lo-ei com mais medo do que pode acontecer no pico de um verão seco, mas também com mais orgulho.

Jornalista. Escreve à sexta-feira


Voltar à terra


Fez esta semana um mês da tragédia de Pedrógão. A natureza morta a perder de vista, a contrastar com os cabos e as placas novas, deu-me um nó no estômago.


Fomos celebrar o aniversário do meu avô à terra, numa festa daquelas para juntar a família grande que acaba por se ver pouco, caras que já nem lembrava e onde vi traços da minha mãe, meus. Rumámos à Arega, terra da minha avó, com dois dias de antecedência. Tinha planos para dar uma volta mas, ao bom estilo de família italiana, entre discutir o que era preciso fazer e fazer o que havia a fazer, não sobrou grande tempo. 

Foi já no regresso que fui espreitar um dos meus lugares preferidos escondidos na serrania, as Fragas de São Simão. Sabia que o fogo tinha andado perto, mas a caminho das Fragas, e quando cortei para o IC8 e a paisagem começou a ser uma enorme mancha de árvores queimadas de cima a baixo, senti um nó no estômago – aquela dor-medo parecida com quando temos uma vertigem e parece que as pernas ficam com cãibras.

As proteções de borracha dos cabos derretidos a dar lugar a outros já novos, recém-instalados, com as caixas e placas a reluzir, a contrastar com a natureza morta, pareciam uma forma de forçar a normalidade no meio do desalento. Necessária, mas agressiva. E mesmo podendo estar à espera, a violência daquela paisagem acordou de uma forma indescritível o que ficou inquieto cá dentro depois do fogo de Pedrógão, a sensação de que somos pouco quando tudo está contra. E, depois, a vida continua.

Quando era miúda e íamos nas férias grandes para a terra, havia anos em que ficava à noite a ver as chamas ao longe, o vermelho vivo a devorar a serra, como se fosse um espetáculo. A minha avó e os tios, preocupados, não tanto com as terras mas com as pessoas, e eu, menina da cidade, a admirar, como noutras noites ficava deslumbrada com o céu estrelado a perder de vista, como se fossem coisas passíveis de admirar de uma mesma maneira, numa qualquer categoria ingénua de beleza. Fez esta semana um mês do fogo de Pedrógão e soube no fim de semana o quanto as impressões distantes da tragédia, como tudo o que se debateu vezes sem conta, ficaram marcadas cá dentro. 

No caminho para a terra via as árvores penduradas sobre a estrada, às vezes quase a tocarem-se. Qual distância de segurança? Onde é que isso é cumprido? Ali, o que ardeu, ardeu, o que não ardeu está pronto para arder. E é assim por quilómetros e quilómetros de árvores encavalitadas e casas cercadas. Numa noite sonhei com as chamas a aproximarem-se. Por onde fugiríamos? Para onde hão de fugir as pessoas para quem “a terra” é casa?

Falar do fogo com quem lá vive é ouvir que volta e meia ele vem. Sempre assim foi. Tentam safar o que têm como podem, nas pickups, ajudando-se uns aos outros, correndo para o fogo, e não fugindo dele. Há o contrafogo “que os espanhóis usaram” e que cá não é permitido – se os apanham, são incendiários, outras vezes fecha-se os olhos porque o que importa é que funcione. E depois há também a perseguição aos eucaliptos, que é vista como uma discussão de secretaria em Lisboa. Vão plantar o quê e para quê? E limpar as terras? De quantas pessoas é que é preciso limpar as terras para travar o fogo? E com que dinheiro? Limpa-se o que está mais perto de casa.

E o que trabalham aquelas pessoas todas para no verão terem mais isto – há que acordar de madrugada até ser velho ou para lá de velho, ver dos animais que nem rendem assim tanto, correr serra acima e serra abaixo todos os dias. E depois, para que a festa seja boa, todos dão um pouco. Os legumes, o barril de cerveja, o eucalipto verde para fazer a sombra e proteger das fagulhas do churrasco – que quem sabe diz que é assim que se faz. O rapaz do acordeão, que começou a tocar há cinco anos e agora tem 20 e poucos, e é daquilo que gosta. Quando são as nossas raízes, é do acordeão e das rimas das desgarradas que todos gostamos. 

Resta dizer que a festa foi melhor do que poderíamos desejar e até a minha avó de 87 anos dançou o Despacito. Gostava de ter aquela sabedoria dela, a sabedoria da terra, pelo menos tê-la, saber os versos da aldeia de cor, como sachar, que é preciso pôr as cebolas a secar antes de as entrançar, as manhas das ovelhas que aprendem a subir para a carrinha porque lá devem saber que vão para sítios onde há mais pasto. Agora até há uma autoestrada que para quase dentro de casa, não há grandes desculpas para não ir mais vezes – só talvez a sucessão de pórticos na A13, não tanto pela conta final, que não tenho de passar ali todos os dias, mas pelo assalto que se sente quando se sucedem uns aos outros, 50 cêntimos aqui, 25 ali e por aí fora, para que ninguém escape. Ao voltar, fá-lo-ei com mais medo do que pode acontecer no pico de um verão seco, mas também com mais orgulho.

Jornalista. Escreve à sexta-feira