Mesmo durante a silly season, há que alertar para as implicações de certos actos praticados no universo paralelo das redes sociais. As Constituições, e desde logo a dos EUA, que viu a luz do dia em 1787, nasceram dentro da galáxia Gutenberg, numa época em que os cidadãos liam livros, polemizavam a partir da consulta dos jornais, escreviam cartas onde discutiam ideias e, imaginem a ousadia, frequentavam cafés onde discutiam uns com os outros. Por via dos telefones inteligentes, que substituíram a inteligência dos utilizadores, todos se consideram desobrigados de ler, em breve de pensar e menos ainda de ter uma opinião que obrigue a um esforço de fundamentação, tarefa esgotante face à leveza de um like. Donald Trump é o presidente dos tempos que correm. Não pensa, twita. E não gosta que os seus tweets sejam contrariados pelos tweets alheios. E, vai daí, bloqueia os autores dos tweets desconformes, fazendo com que estes não surjam na sua conta do Twitter.
Tudo é possível nas redes sociais, onde a regra fundamental é a inexistência de regras. E por que bulas deveriam existir regras para o discurso ou até para o diálogo nas redes sociais? As redes sociais são leves, rápidas, instantâneas, onomatopeicas, guturais, dispensam regras, normas, leis e, por consequência, a Constituição, esse artefacto pré-smartphone.
Este estado de coisas recorda-me uma boa alma castrense que tinha passado toda a sua vida a leccionar o Regulamento de Disciplina Militar. A docência consistia em berrar o RDM, artigo por artigo, número por número, alínea por alínea, aos incautos discentes, vulgo milicianos com a malapata de se terem licenciado em Direito. Questionado sobre a manifesta desconformidade entre o RDM e a Constituição da República, o brioso militar informava, com verdade, que a Constituição não tinha sido publicada na Ordem do Exército, pelo que “não era para ali chamada”. Quando Donald Trump, por mérito próprio e voto da maioria dos grandes eleitores do colégio eleitoral presidencial, usa e abusa do Twitter para comunicar sobre a coisa pública, fá-lo enquanto presidente dos EUA. Se o fizesse enquanto cidadão comum, muito menos gente nos EUA e no mundo se importaria com os seus estados de alma. Mas, ao fazê-lo através de uma rede social, tenta privatizar o discurso sobre a coisa pública, afastando as regras, desde logo constitucionais, sobre a liberdade de expressão. E a liberdade de expressão, ainda que esquecida no texto original da Constituição dos EUA, demasiado preocupada com a mecânica do exercício do poder político, consta da i das emendas, incluindo a liberdade de imprensa. E como o leitor benigno há-de imaginar, a liberdade de imprensa não se limita ao universo de Gutenberg, inclui a rádio, a televisão e, claro, as redes sociais. A tentativa de Trump de reinventar, por via das redes sociais, as regras da comunicação sobre a coisa pública tem de ser confrontada com os parâmetros constitucionais. E tais parâmetros incluem, há muito e numa fecunda jurisprudência do Supreme Court, o direito ao contraditório, nem que seja na versão minimalista do direito de resposta. A liberdade de expressão, desde logo a liberdade de expressão dos titulares de cargos públicos, em particular dos que resultam de processos eleitorais democráticos, implica o direito de serem contraditados. Tal será reconhecido em breve por um qualquer juiz de um tribunal de 1.a instância dos EUA. God bless!
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990