“A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lucas, 12:48)


Temos pois que, não fossem os referidos senhores secretários de Estado, isto era uma não questão, mas estes, mesmo sendo do PS, estão ao abrigo das leis da República com as quais o sr. presidente da AR não quer ter nada a ver


Em inícios de Agosto de 2016, por decreto prolatado pelo sr. ministro dos Negócios Estrangeiros, tornou-se oficial que a polémica conhecida por Galpgate estaria, oficialmente como convém, encerrada.

Naquele costumado respeito pela separação de poderes e pela autonomia e imparcialidade, e, já agora, isenção do poder judicial (área de onde transitou, do Código de Processo Penal para o anedotário político-escatológico, o instituto do segredo de justiça), decretou então o sr. ministro, liminarmente como convém a quem despacha, que “os secretários de Estado fizeram questão de reembolsar; ao fazê–lo, o caso fica encerrado”, e sintetizou, segundo noticiava o “Público” à data, que “o pagamento dissipa as dúvidas”.

No impecável respeito que, e já não é de hoje, nutre pela separação dos poderes – já que, aparentemente, este acto do governo não revogara a tal disposição penal, apesar de ter decretado o fim da querela –, o sr. presidente da Assembleia da República apressou-se a dar a sua achega.

Porventura subindo na hierarquia das normas – já que o governo não foi eficaz a condicionar a actuação do titular do inquérito –, veio decretar, do alto da sua importante presidência (mas a título de sua opinião pessoal) e desde logo abreviando o inquérito do MP e o julgamento dos tribunais, por sua vez, que: “Para mim há um mistério nisto, que é o facto de haver uma empresa que patrocinava a seleção nacional de futebol, a Galp, ter feito uns convites a umas pessoas e elas terem aceitado. Onde é que isto configura um crime parece-me totalmente absurdo. É a minha posição pessoal.”

Conhecíamos já um amiudadamente relembrado desinteresse do sr. presidente da AR pelo – aparentemente, instituto de importância menor – chamado segredo de justiça.

Começamos fundadamente a duvidar, perante as sucessivas amostras que nos vão sendo presenteadas, se o mesmo, efectivamente, acreditará em realidades igualmente estruturantes como a ideia da existência de um Estado de direito.

Socorrendo-se daquela singular ideia de que, dependendo da máscara que usamos (como os gregos das antigas tragédias), podemos assumir posições pessoais e institucionais absolutamente díspares perante factos objectivos, refere o cidadão que preside à AR que não consegue retirar do facto de os srs. ex-secretários de Estado terem aceite os convites da Galp que tal possa configurar um crime.

É verdade, o comum mortal despido de imperii e na sua perplexidade natural perante a insana produção legislativa pergunta-se muitas vezes sobre a sanidade intrínseca da mesma ou a utilidade de se pagar o que seja a quem a faz. Já é difícil configurar tal exercício a quem vive dessa exacta condição e se permite estes apartes.

É relativamente clara a tendência totalitária e pouco democrática, na óptica da transparência e esclarecimento dos governados, quando se assiste aos trabalhos das comissões da AR ou aos trabalhos do plenário, como, por exemplo, no caso do inquérito da CGD, onde a maioria nada vê mas, aparentemente, o poder judicial já está a ver, e muito…

Não obstante, tentaremos dar um contributo a este incrédulo cidadão sobre onde e como se pode saber se uma determinada actuação pode configurar um crime, ainda que nos cause, confessa-se, alguma estranheza esta dúvida existencial na referida pessoa!

Assim, esclarece-se: a possibilidade de um determinado acto poder configurar um crime decorre do primado da lei e das conquistas do positivismo que vieram impô-la – na dúvida sobre aquilo de que estamos a falar, é daqueles papéis que são publicados, depois de promulgados, produzidos numa agremiação a cujos trabalhos o referido senhor preside, e que se chamam também, sugestivamente, leis – é o modelo que a Constituição acolhe há muito tempo (veremos por quanto mais).

E de cujo princípio constitucional absolutamente estruturante se recolhe que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, como refere o brocardo latino (nullum crimen, nulla poene sine lege).

Em obediência a tal desígnio constitucional, houve no passado (mais do que de produzir inúteis códigos de conduta) verdadeira vontade política de fazer uma lei que regulasse (bem ou mal) esta matéria, e assim correu um processo que aprovou e fez entrar em vigor a lei 34/87 de 16/7, que vigora ainda, já com várias alterações; nas últimas, da lei 30/2015 de 22/4, visava-se regulamentar os “Crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos”.

Nesta sua actuação e na sua qualidade de membros do governo, os srs. ex-secretários de Estado exerciam cargos políticos para os efeitos previstos na referida lei (art.o 3.o).

E, atendendo ao valor do pacote oferecido, parece poder ter-se como assente que as viagens tinham um valor económico não despiciendo, além de poder questionar-se, desde logo, se à luz do contencioso fiscal existente entre a oferente e o Estado seria, em qualquer cenário, socialmente adequado receber qualquer espécie de vantagem ou brinde, mesmo que irrisório, o que também não era o caso –dando-se de barato que não era, também, qualquer fortuna.

Note-se, porém, que a tentativa é punível, pelo que interessa pouco se efectivamente tal oferta gerou algum resultado ilícito ou que os viajantes tenham tido um percurso exemplar e isento depois de viajar para que, ainda assim, o crime se consume.

Não sobram, pois, dúvidas de que existindo, e há muito, este regime jurídico, se os titulares de cargo político, no exercício das suas funções ou por causa delas, aceitaram para si vantagem patrimonial que não lhes era devida, devem eles, refere o n.o 1 do artigo 16.o do referido diploma, ser punidos com pena de prisão de um a cinco anos.

Temos pois que, não fossem os referidos senhores secretários de Estado, isto era uma não questão, mas estes, mesmo sendo do PS, estão ao abrigo das leis da República com as quais, pessoalmente, o sr. presidente da AR não quer ter nada a ver.

Relembre-se ao sr. Presidente, perante a sua estupefacção, que a ideia da seriedade da mulher de César que esta lei tutela é a da mulher do imperador romano, e não a de uma qualquer dinastia onomástica da pós-verdade, e talvez se lhe faça luz.

Advogado na norma8advogados, pf@norma8.pt, Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990