Coimbra tem mais encanto na hora das boas notícias


Talvez por estar a ficar mais velha, ou por ter dormido bem, cheguei ao “encontro anual” com um sorriso de orelha a orelha e mais calma que um cavalo injetado com tranquilizantes


Vim à consulta de rotina anual de hematologia, aos Hospitais da Universidade de Coimbra, mostrar este corpinho à doutora. Como já vos contei (podes reler o texto “Eu na consulta? Só se for com meia nádega de fora”), estou sempre com muita pressa, cheia de vontade de me pôr a milhas e de despachar o assunto. Já em relação a esta cabeça confusa? Continua a mesma: a vigia anual ainda me traz demasiados sentimentos contraditórios e se, por um lado, sabe bem ser consultada pela médica (para confirmar, através das palavras dela, que me mantenho “rija que nem um pero”), por outro, só queria que ela nunca mais me quisesse pôr a vista em cima. Quanto a isso, nada mudou.

De qualquer forma, devo mesmo estar a melhorar este mau feitio porque este ano portei-me que nem uma lady (se existissem medalhas de bom comportamento, teria recebido uma). Talvez por estar a ficar mais velha, ou por ter dormido bem, cheguei ao “encontro anual” com um sorriso de orelha a orelha e mais calma que um cavalo injetado com tranquilizantes. Sempre me chateou estar com pessoas e em lugares por obrigação (exceto num resort; podem raptar-me e obrigar-me a estar num resort que prometo que não fujo) mas, desta vez, vim com boa vontade, sem uma pontinha de medo ou ansiedade e nada incomodada por me obrigarem a apanhar não sei quantos transportes para chegar ao destino. Um mimo de menina.

Além disto, é importante relatar um facto curioso sobre o meu comportamento, porque dará sentido ao pequeno episódio que vos contarei a seguir. Tenho–me apercebido que tem sido costume meu aparecer sempre vestida com a pior roupa que tenho (aquela que guardamos para as limpezas de sábado) e acho que, até ontem, nem me penteava quando ia ao hospital. Sinceramente, nunca o fiz de forma premeditada, mas sempre foi algo que aconteceu naturalmente. Lembro-me de a minha mãe me chamar a atenção por conta da minha falta de noção (“parece que vens de pijama para aqui!”) e de eu concluir que talvez esse fosse o meu pequeno ato de rebeldia. Estar aqui, contrariada, não combinava com nenhum batom nem qualquer sombra nos olhos. Mostrar-me indiferente, descontraída, “sem querer saber” dava–me a ilusória sensação de que me manifestava a favor da libertação da Marine: “Senhora doutora, deixe a Marine ir embora!”

Mas desta vez foi diferente. Não sei porquê mas decidi vestir-me como se fosse para algum sítio bonito. E isso mudou mesmo alguma coisa em mim. Sentia-me ainda mais bem-disposta, ainda mais confiante, com vontade de almoçar fora depois. Com a boa energia que importa ter num hospital.

Ao chegar, e antes de ir para a consulta, passei pelo assustador desafio de me enfiar no Laboratório Central e fazer as análises ao sangue. E enfiar é a palavra certa – para entrar dentro do edifício era preciso passar por centenas de pessoas que, coladas umas às outras, não andavam nem para trás nem para a frente. Era tanta gente que, assim à primeira vista, pensei que estavam a distribuir brindes grátis. Só isso justificaria o caos. Além do ambiente caótico, da confusão e do cheiro a suor, foi muito complexo encontrar sorrisos por ali. As pessoas estavam chateadas, saturadas (e com razão!), e eu só pensava que o Marcelo nunca aparece quando é preciso para animar a malta e tirar selfies.

Depois de apreciar o cenário e de me sentir uma menina de cinco anos perdida na floresta, tive a infeliz ideia de me dirigir à senhora voluntária e de lhe perguntar como é que funcionava a escolha da senha. Possivelmente por lhe ter dado algum poder, a amiga desbobinou–me isto:

– Pois, isto está muito atrasado! Mas também vens tão tarde! Não dormiste? Estás com tão mau aspeto!

E pronto. Três segundos. Bastaram três segundos para ver destruída a minha roupita da moda, escolhida a dedo e usada, pela primeira vez em 13 anos, naquele contexto. Naqueles três segundos vi a minha autoestima tentar afogar-se no rio, mas fui lá buscá-la porque não deixo que ela se mate por tão pouco. 

Como sempre acontece quando sou apanhada desprevenida, não reagi ao insulto (I know, I know) e balbuciei só qualquer coisa como:

– Eu vim de transportes. (Como escolhem os voluntários? Não sei. Se são todos assim? Claro que não. Se tenho um azar do caraças porque a mim só me calham princesas? Com certeza.)

Lá engoli o trato, escolhi a minha senha, infiltrei-me naquele amontoado de gente e depois de, milagrosamente, encontrar um lugar para me sentar, curei o meu amuo. Como? Não descansei enquanto não encontrei alguém que valesse a pena conhecer. E fui tão eficaz na procura que nem tive de me levantar do lugar. Nos bancos da frente estavam sentadas duas senhoras. Uma com os seus 80 anos, outra não teria mais de 40. Não percebi qual o grau de parentesco que as ligava, mas compreendi que a senhora de 40, a acompanhante, era a cuidadora perfeita. Que delícia. De sorriso grande, enquanto lhe dava festinhas na face, dizia-lhe meigamente:

– Ai, ai, ai que eu não estou a gostar nada dessa cara. Já sei! Vou mostrar-lhe fotografias do Rodrigo!

Não sabia quem era o Rodrigo, mas calculei que deveria ser alguém muito amado pelas duas porque lhes roubou uns quantos sorrisos. Depois, sempre que a senhora mais velha desalentava com o tempo de espera, a cuidadora relembrava-lhe:

– Dona Ana, o que é que eu digo sempre? Energias positivas atraem energias positivas! Vamos lá arrebitar e animar porque isto não é o pior do mundo!

Com os olhos cheiinhos de lágrimas, sorri eu também, mesmo sabendo que não era para mim que falava. Que bom, que bom foi ver gente tão bonita naquele lugar. Fiquei feliz pela Dona Ana.

Depois de picadinha, fui para a consulta e, mesmo com um atraso de quase quatro horas, juro-vos que não fiquei chateada com a médica. Soube que ela não saía do consultório desde as 8h30 da manhã! Sem almoçar, sem descansar, sem parar, atendeu-me com um sorriso generoso e com as palavras mais importantes na boca:

– As tuas análises estão perfeitas. Estás ótima.

Retribui-lhe a simpatia e fui-me embora com vontade de chorar por me sentir tão grata, sempre, mas também por ter o coração tão apertado. Dói-me sempre ouvir notícias destas porque nunca compreendo como não puderam o Pedro, a Mafalda, a Cristiana, o Jorge e os tantos amores dos outros receber também estas palavras. 

Fui-me embora feliz, muito feliz, mas outra vez sem compreender.

 

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