Se há ensinamento que Tocqueville nos deixou na sua viagem pelos Estados Unidos foi a importância das crenças que consubstanciaram o nascimento, o crescimento e a força da América e, ao mesmo tempo, como essas crenças foram igualmente constitutivas das suas maiores fraquezas. A paixão pela liberdade de imprensa e a livre circulação de jornais, um clero esclarecido, concordante e promotor da separação de poderes entre a esfera religiosa e o poder civil, a accountability dos servidores públicos como base de uma vigilância eficiente, afastada do autouso dos seus poderes e consciente dos seus deveres e obrigações, concomitante com o respeito por aqueles que servem as populações, constituíam condimentos de ampla latitude que tanto se registavam no domínio das oportunidades como das ameaças à afirmação de liberdade, com todos os percalços históricos de qualquer outra nação, daquela que é hoje a maior nação do mundo.
No fundo, a afirmação do poder democrático tem essa virtude latente. A busca em nós mesmos, no domínio do exercício da nossa liberdade, das nossas crenças, dos nossos sentimentos, olhando-os num estado de alteridade, ou seja, de relação com o outro, mas sobretudo numa lógica de individualismo. Ora, esse individualismo, presente na democracia, só se afirma na medida em que as condições dos indivíduos se equalizam entre si. E isso traduz-se num isolamento maior, a tal ameaça de Tocqueville, perante o decisor público. Não na sua função, mas na sua pessoalidade. Somos donos do nosso próprio destino e cada vez mais o tendemos a ser, sobretudo porque o regime, a democracia, encarrega-se disso.
Numa recente passagem pelos Estados Unidos constatei que o problema de uma presidência de Trump é muito mais uma dor de cabeça para os europeus do que para os próprios norte-americanos. A realidade nova-iorquina mediática e fungível nada tem que ver com a realidade do Arizona, do Nevada ou até da Califórnia. Os norte-americanos têm consciência de que as lideranças passam, mas que a democracia e o seu regime de liberdades permanecerá. Sente-se uma anestesia social generalizada, com todos os perigos que isso representa. Sendo o principal o alheamento da governação mesmo quando ela pode culminar em tragédia.
Este sentimento é também próprio de sociedades que ultrapassam crises. Crises como a nossa, que nos custou a todos “os olhos da cara” e cujo alívio, erradamente, se instalou como definitivo quando é ainda bastante provisório. A tendência de se achar que “o pior já passou”, sobretudo quando a generalidade dos que influenciam a nossa opinião creem no mesmo, é um anestésico que tem tanto de perigoso como de indesejável. A apatia social face a tragédias gravíssimas como a de Pedrógão Grande, que ainda ninguém se dignou esclarecer devidamente, como as falhas de segurança na nossa defesa nacional, cuja assunção de responsabilidades penalizou os mesmos de sempre, a utilização de meios públicos para propaganda político-partidária sem que ninguém exija a necessária accountability, o lidar com tragédias como se nada fosse são não só prova de uma sociedade anestesiada pela garantia das suas liberdades, pressupondo que não as pode perder, como um atestado de menoridade e indiferença àquilo que mais nos é devido em democracia. A prestação de contas.
Tocqueville tem uma expressão curiosa. “A República sobreviverá até ao dia em que o Congresso descobrir que pode subornar o povo com o seu próprio dinheiro.” Pelo sim pelo não, mantenhamos esta afirmação bem presente nas nossas cabeças.
Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário, Escreve à segunda-feira