Querido carequinha acabado de chegar aqui ao hotel. Esta coisa do cancro tem muito que se lhe diga e, na verdade, não tem assim tanto. Passo a explicar. Se tiveres pachorra e tempo para ler todas as crónicas escritas neste espaço, nas redes sociais, no blogue, vais ver que há muito a dizer – escrevo sobre cancro há quatro anos e só Deus sabe como nunca me falta assunto; por outro lado, é tudo uma questão de perspetiva e, para ti, ter cancro pode não ser o pior do mundo e não ter muito que se lhe diga.
Essa será, na verdade, uma das descobertas mais incríveis que farás: independentemente do tipo de cancro que te foi diagnosticado e do estádio do mesmo, não será isso que definirá a forma como encararás tudo isto. Não será o nível da tua doença que ditará se será mais fácil ou mais difícil para ti ultrapassar este momento. O meu namorado, por exemplo, é a pessoa mais saudável do mundo – acho que um dia teve uma otite – e é a hipocondria em pessoa.
De qualquer forma, atenção: o mundo tentará que penses o contrário.
Logo que assumas a careca à malta, as pessoas classificarão o teu estado de espírito pelo grau do cancro que te calhou no sapatinho ou apenas pela tua aparência. Por exemplo: se o cancro foi diagnosticado no estádio iii, “ui, ui, ai, ai, pois, pois, tens motivos para chorar”, mas se já tiraste meio pulmão e uma mama e não tens qualquer sinal da doença, “upa, upa, acaba lá com a choradeira que o pior já passou!”. Já se te atreveres a sair de casa arranjado(a), com a roupita da moda, “bem… afinal não tens nada e queres é sacar a baixa médica e fugir do patrão”.
Alguns indivíduos olharam para ti e dir-te-ão, assim à primeira vista e só por te micarem à distância, se tens um cancro dos difíceis, dos assim-assim ou dos fáceis. Mas não te atrapalhes muito com estas classificações. Quis só alertar-te. Mantém-te focado em sentires –te bem e não deixes que o cenário exterior decida o teu nível de paz. É tudo um trabalho teu, é tudo mérito teu – nunca te esqueças disso.
Mas e se tu, que me estás a ler, estás neste momento com cancro pela segunda vez? E se estas palavras até te estiverem a enervar porque “Marine, não me lixes que eu já sei isto de cor e nem por isso é mais fácil”?
Se assim for, tens razão. Na prática, não sei do que estou a falar. Só tive cancro uma vez e não penso repetir a dose. Normalmente, quando janto, sirvo-me sempre duas vezes, mas em relação ao cancro já estou fornecida. Muito obrigada, mas não quero mais. Já apanhei vários sustos, mas nunca passaram disso. Uma vez, no meio do desespero do cancro do meu Careca Power e depois de apresentar a minha palestra, ouvi a apresentação que se seguia. Era sobre cancro da pele. Assustadiça talentosa, lá comecei a contar sinais, a ver tamanhos, a rezar pai-nossos, e claro que, dias depois, já estava numa consulta de dermatologia, aflitinha por analisar cada sinal. Sem rodeios, o médico olhou para o meu corpo de polícia sinaleira e disse-me:
“Temos de fazer uma biópsia a um sinal. Pode ser maligno.”
Ao ouvir aquela informação brutal vinda de um médico aparentemente tão simpático, pálido, branco como a cal, saiu-me isto:
“Obrigada, senhor doutor, mas não dá. Já tenho dois cancros lá em casa e não posso mesmo levar mais nenhum.”
E assim foi. Tive uma enorme dose de sorte e não trouxe mesmo mais nenhum cancro comigo mas, mesmo que não me possa colocar no teu lugar, arrisco dizer que consigo perceber aquilo que estás a viver – senti o arrepio da suposição algumas vezes e vi o meu Careca Power experienciar o medo em duplicado.
Para já, parece que voltaste para o teu (tua) ex porque, porra, é sempre mais difícil da segunda vez, e posso imaginar também que esse sabor que tens na boca é o de injustiça. Já tinhas aprendido a lição e não entendes o porquê de viver tudo novamente. Acredito que seja mais duro agora porque as ilusões já se dissiparam e as coisas são mais claras, menos ingénuas. Já sabes que dói. A alma e o corpo têm também maior resistência a aceitar que os magoem novamente.
Mas, meu querido carequinha regressado, se esta for a tua realidade, quero dizer-te que continuo a acreditar que ainda és tu o protagonista e o diretor da tua cena.
Ele foi. Ele agarrou na frustração de repetir a experiência e usou-a a seu favor.
Lembro-me que o meu Careca Power já sabia, por exemplo, que alimentos não poderia ingerir, em que tratamentos suplementares poderia confiar, o que o acalmava. Conhecia o seu corpo como eu nunca conheci o meu. Sabia onde estar, como estar, para onde ir. Sabia com o que se preocupar e o que deveria largar.
Porque se sabia mais, fazia melhor.
Por isso, hoje este texto é para ti. Por mais difícil que seja voltar a ouvir uma matéria que já se conhece de cor, por mais defesas que tenhas, por mais que já exista um historial, até assim há espaço para crescer, para melhorar.
Se sabes mais, fazes melhor. Amas mais, vês mais, sentes mais.
Às vezes é preciso chumbar para nos tornarmos os melhores alunos no ano seguinte. E ser repetente não significa que não haja um brilhante futuro pela frente.
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